Eutopia. Revista de Desarrollo Económico Territorial N.° 15, junio 2019, pp. 57-78 |
Os projetos sociais de especialização e diversificação de produção e renda na fumicultura de base familiar no Sul do Brasil
Stefanie Herbsthofer,* Décio Souza Cotrim** e Mario Duarte Caneve*** * Mestre em Desenvolvimento Territorial e Sistemas Agroindustriais. Universidade Federal de Pelotas. stefanie.herbsthofer@yahoo.com.br Recibido: 11/11/2018 • Aceptado: 25/04/2019 •
Publicado: 30/06/2019 Resumo A produção de tabaco tem grande importância econômica e configura uma importante fonte de renda para os agricultores. Estes apresentam altíssima dependência econômica da atividade, porém grande parte demonstra interesse em abandonála. Uma das suas opções é a adesão à diversificação de cultivos e criações. Por outro lado, existem agricultores que optam pelo aprofundamento nessa cadeia. Observando o território Centro Sul/RS, os projetos de especialização e de diversificação entram em conflito produzindo um gradiente dentro do processo de recampesinização/descampesinização. Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo caracterizar os projetos sociais de especialização e de diversificação e analisar a dinâmicas que regem a escolha dos fu- micultores por especializar ou diversificar. Os métodos utilizados foram análise de um banco de dados e observação participante realizada durante um período de seis meses. Como resultados deste estudo foi possível constatar que o projeto de especialização apresenta produtores altamente dependentes do tabaco, que o produzem há cerca de vinte anos e vivem em pequenas propriedades; enquanto o projeto de diversificação ainda tem pouca expressividade na região devido principalmente aos altos valores da unidade de tabaco, atrelado a um limitado acesso a assistência técnica e às dificuldades de comercialização de outros produtos, primários ou processados. Palavras-chave: Tabaco, Projetos Sociais, Especialização, Diversificação. Abstract The production of tobacco has great economic importance and sets up a good income source to the growers. The families show very high economic dependence on the activity, however, a good share of them demonstrate interest in leaving it. One of their options is the adhesion to diversification of crops and breedings; on the other hand, there is a number of farmers that opt to go deeper into the chain. Observing the Center South territory, RS, the projects of specialization and diversification get into conflict causing a gradient within the process of repeasantization/depeasantization. In this sense, this work aims to characterize the social projects of specialization and diversification within the tobacco cultivation and analyze the dynamics, which conduct the tobacco farmer’s choice to specialize or to diversify. fte methods used were the analysis of a database and participant observation performed during the course of six months. As results of this study, it was possible to establish that the specialization project presents farmers who are highly dependable of tobacco, that produce it for about twenty years and live in small properties. While the diversification project still has little expressivity in the region, due mainly to the high values paid for the tobacco unit, linked to a limited access to technical assistance and to the commercialization difficulties that exist for other products. Introdução Brasil é o segundo maior produtor mundial de tabaco, tendo apresentado em 2018 uma produção de quase 686 mil toneladas e rendimento de R$ 6,2 bilhões. Desse montante 97% foi produzido na região Sul do país (Afubra 2019). Esse cultivo merece destaque devido à sua enorme importância econômica e ao fato de quase toda a produção ser proveniente da agricultura familiar que, por sua vez, correspondia, em 2006, a 85,7% do número total de estabelecimentos agropecuários do Rio Grande do Sul (IBGE 2007). As famílias produtoras envolvidas com o tabaco fazem parte de um Sistema Integrado de Produção de Tabaco (SIPT) no qual as empresas integradoras fornecem aos agricultores um pacote composto de crédito, sementes, venenos e orientação técnica, provendo a garantia de aquisição da safra(Cotrim e Canever 2016). Na safra 2018, por exemplo, o SIPT pagou aos agricultores o valor de R$9,15 por quilograma de tabaco seco e enfardado(Afubra 2019). A existência desse processo de envolvimento, agregado aos altos valores da unidade de produto, gerou uma forte relação de dependência por parte das famílias produtoras. Em contraponto a essa realidade, existe em todo o mundo uma pressão pela redução do consumo de tabaco em razão do prejuízo que ele causa à saúde. Em 2005 entrou em vigor a Convenção Quadro par o Controle do Tabaco (CQCT), um tratado internacional organizado pela Organização Mundial da Saúde, com o intuito de proteger as gerações presentes e futuras dos danos causados pelo consumo e exposição ao tabaco (WHO 2003). No contexto da ratificação pelo governo brasileiro da CQCT, foram lançados: o Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas com Tabaco, em 2005 (Brasil 2010) e, posteriormente, em 2013, a Chamada Pública 1 para seleção de Assistência Técnica e Exten- são Rural (ATER) para promoção da Diversificação de produção e renda em municípios com produção de tabaco (Brasil 2013). Uma das regiões atingidas pela Chamada Pública é o território Centro Sul/RS, que se localiza no eixo entre as cidades polos de Pelotas e Porto Alegre (Brasil 2009), sendo composto por 18 municípios: Arambaré, Arroio dos Ratos, Barão do Triunfo, Barra do Ribeiro, Butiá, Camaquã, Cerro Grande do Sul, Charqueadas, Chuvisca, Dom Feliciano, Cristal, General Câmara, Mariana Pimentel, Minas do Leão, São Jerônimo, Sentinela do Sul, Sertão Santana e Tapes (Brasil 2015). Uma das primeiras ações da assistência técnica dentro da Chamada Pública foi a realização de um diagnóstico de 960 famílias produtoras de tabaco no território Centro Sul/RS. O questionário foi baseado em doze dimensões analíticas com informações correlacionadas. Foram levantados dados básicos referentes à família dos agricultores, ao domicílio familiar, à educação, aos bens possuídos, às características da produção agropecuária e do sistema de produção do tabaco e às perspectivas de cultivos e criações para diversificação. Finalizando, foram levantadas informações referentes à saúde no trabalho, acesso a ATER, à produção para o autoconsumo familiar e à renda bruta familiar. Ou seja, um amplo conjunto de informações que permite uma descrição detalhada de várias dimensões de um amplo conjunto de famílias de agricultores em um dado território, possibilitando o trabalho de construção de alternativas ao tabaco em ações participativas dentro das comunidades rurais (Cotrim 2016). Essa massa de dados foi sistematizada e codificada para a construção de um banco de dados que permite inúmeras combinações de informações, gerando noções voltadas à análise científica. O acesso a esses dados permitiu a caracterização desse grupo de agricultores produtores de tabaco, demonstrando que, por maior que seja a dependência econômica dos agricultores em relação à atividade, 65% dos entrevistados demonstram interesse em abandonála (Cotrim e Canever 2016). Diante de tal situação, a diversificação se torna uma possibilidade e um desafio, já que a escolha de ter o tabaco como fonte principal de renda é baseada, além da boa rentabilidade da atividade e da garantia de venda da produção, no fato de que as famílias já estão habituadas à rotina de trabalho e ao ciclo da cultura, além de já possuírem a estrutura necessária para o cultivo (Cotrim e Canever 2016). Por outro lado, é um fato comumente conhecido que a epidemia do tabagismo é um problema global, com sérias consequências para a saúde pública, sendo fator de risco para o desenvolvimento de inúmeras doenças, como várias formas de câncer, doença cardiovascular, doenças da tireoide, osteoporose, diabetes, enfisema pulmonar, úlcera gástrica, psoríase etc. (Gomes 2003). No entanto, os danos provenientes da cadeia produtiva do tabaco ultrapassam os problemas de saúde que acometem os fumantes ativos e passivos; eles vêm desde a base da cadeia, acometendo os agricultores responsáveis pelo seu cultivo. Como descreveu Cotrim (2013), o cultivo do tabaco possui fortes características de cultivos olerícolas, exigindo, assim, um amplo leque de operações manuais durante todo o seu ciclo produtivo. A preparação da lavoura se inicia no inverno, com a produção das mudas, e se estende até o verão, quando ocorre a colheita, por sua vez realizada em uma série de etapas, que consiste no momento de estrangulamento do uso da mão de obra familiar e também de grande dificuldade de contratação de ajudantes. As plantas em desenvolvimento recebem uma pesada carga de adubos químicos e agrotóxicos; estes últimos, em sua grande maioria, recebem classificação toxicológica III (medianamente tóxico) e classificação do potencial de periculosidade ambiental II (produto muito perigoso ao meio ambiente). Antes da comercialização, as folhas de tabaco ainda precisam passar pelo processo de secagem, em estufas de alvenaria construídas nas propriedades rurais (Cotrim 2013). Logo, o ciclo de produção exige muito tempo e dedicação dos agricultores, soma dos à pressão de entregar um produto final de boa dos à pressão de entregar um produto final de boa qualidade para a empresa integradora, bem como quitar as dívidas geradas na aquisição dos insumos. Se for levado em consideração, ainda, que a maioria dos agricultores não utiliza Equipamentos de Proteção Individual – EPIs – adequados, tanto no momento da aplicação de agrotóxicos quanto ao manipularem as folhas verdes de tabaco, os danos aumentam drasticamente (Corrêa 2017). Segundo Almeida (2005), os contratos de integração comprometem o produtor a utilizar os EPIs necessários para a aplicação de agrotóxicos e para a colheita, como forma de marketing de duplo sentido, para aparentar responsabilidade social e buscar isenção de responsabilidade pela possível não utilização dos mesmos por parte dos agricultores. Porém, de acordo como autor, a maioria dos fumicultores alega que, por exemplo, as calças se rasgam facilmente na lavoura; os aventais pouco impedem o contato da pele com a umidade presente nas folhas de fumo, carregada de nicotina e agrotóxicos; as luvas não são anatômicas, dificultando qualquer manuseio; o desconforto térmico causado pelo conjunto de equipamentos é insuportável; as viseiras protetoras faciais permitem a inalação do veneno já que são abertas e sem filtro de ar; e as máscaras são inadequadas, permitindo o acúmulo de resíduos.
Como afirma Vendruscolo (2017), com a ampliação dos estudos acerca da DFVT a atuação da mídia contrária ao tabaco passou a levar em consideração não só os malefícios do consumo do cigarro, mas também do cultivo da planta.
Já no que diz respeito aos agrotóxicos, de acordo com Falk et al. (1996), os organofos-forados causam efeitos crônicos sobre o sistema nervoso central, especialmente do tipo neurocomportamental como insônia ou sono perturbado, ansiedade, retardo de reações, dificuldade de concentração e uma variedade de sequelas psiquiátricas como apatia, irritabilidade, depressão, esquizofrenia. Fato que, agregado a todas as circunstâncias citadas anteriormente, gera a alta taxa de suicídios entre os agricultores gaúchos, praticamente o dobro da brasileira 5,2 por 100 mil em 2012, segundo dados do Ministério da Saúde (BBC 2016). Portanto, a preocupação com a diversificação de produção e renda em municípios produtores de tabaco não tem como propósito apenas a redução da sua oferta no mercado, mas também a possibilidade do aumento da qualidade de vida dos agricultores familiares, hoje dependentes desse sistema de produção. Segundo Cotrim (2013), pesquisando no território Centro Sul/RS, a diversificação apresenta como principal característica a convivência, dentro do projeto familiar, do tabaco com outros cultivos e criações, enquanto a substituição configura uma ruptura da família com a fumicultura, que raramente tem volta. As principais atividades inseridas nas propriedades produtoras de tabaco são a viticultura, a piscicultura e a olericultura, com forte presença do cultivo de folhosas, repolho, cebola e batata doce. Encontramse, assim, nos espaços onde a fumicultura se faz fortemente presente, estratégias contrastantes por entre as famílias de agricultores: a especialização na cultura do tabaco, a diversificação de cultivos e criações paralelamente à fumicultura e a diversificação como um passo inicial para aqueles que buscam eventualmente sair da atividade fumageira. Tais estratégias individuais de cada agricultor são denominadas, segundo Long (2001), de projeto individual, o qual seria seu conjunto único de objetivos e práticas. Quando diversos agricultores interagem e dialogam sobre seus projetos individuais, são formados os projetos sociais, ou coletivos (Long 2001). Nesse sentido, a partir da apresentação do contexto, este trabalho tem como objetivo caracterizar, dentro do espaço de construção de projetos do território Centro Sul/RS, os projetos de especialização e de diversificação dos agricultores familiares, assim como analisar os fatores que regem suas escolhas na construção de seus projetos individuais. Referencial teórico Para analisar o espaço empírico citado foi escolhido o aporte teórico holandês da Perspectiva Orientada pelos Atores (POA). Ela parte do pressuposto de que, diferentemente do que afirmam a teoria da modernização e a teoria marxista, apesar de algumas mudanças estruturais resultarem de forças externas, como o mercado e o Estado, todas essas intervenções são mediadas e transformadas pelos atores e grupos sociais cujas vidas elas afetam (Long e Ploeg 2011). De acordo com Long (2001), um ator não é simplesmente um indivíduo, mas um sujeito social que processa informações e cria estratégias em suas relações sociais. Para o autor, é a união de vários atores em benefício de um objetivo comum que leva à mudança social. Tal união é possível graças à agência exercida por cada um, que, por sua vez, consiste na capacidade que cada ator tem de processar sua experiência social e delinear formas de enfrentar a vida, mesmo quando se encontra sob extrema coerção (Long 2001). A ideia de agência foi anteriormente abordada por Giddens (1984), em sua Teoria da Estruturação, em que ele atribui a ela a capacidade dos atores de resolver problemas, aprender como intervir no fluxo de eventos sociais e monitorar suas próprias ações, observando como os outros reagem ao seu comportamento. Como visto em Long e Ploeg (2011), quando a POA é utilizada na análise do desenvolvimento agrário, ela retrata os agricultores não como receptores passivos ou vítimas de uma mudança planejada, mas sim como atores que definem e operacionalizam seus objetivos e práticas de gerenciamento agrícola com base em diferentes critérios, interesses, experiências e perspectivas. Esse conjunto único de objetivos e práticas, como visto anteriormente, consiste no projeto individual do agricultor. Em situações denominadas de arenas, os atores se confrontam uns com os outros, mobilizam suas relações sociais e utilizam discursos no sentido de ganhar fins específicos, ou seja, exercitam sua capacidade de agência. A partir das trocas de conhecimen- tos e experiências, ou seja, da interface que se dá nesse ambiente, são construídos os projetos sociais (Long 2001). As dinâmicas entre os projetos sociais de especialização e diversificação configuram o que Ploeg (2008) entende como um processo de recampesinização/descampesinização. Segundo o autor, a agricultura pode ser conceituada a partir de três grupos díspares, porém inter-relacionados: a agricultura camponesa, a agricultura empresarial e a agricultura capitalista, sendo que os dois primeiros representam as duas situações encontradas no cenário da agricultura familiar e, consequentemente, no sistema de produção do tabaco. A agricultura camponesa se baseia no uso sustentado do capital ecológico, e considera a defesa e o melhoramento das condições de vida dos camponeses. Ela apresenta como principais características a multifuncionalidade,2 a mão-de-obra familiar, a posse das terras e dos meios de produção por parte dos familiares, e a produção voltada não só para o mercado, mas também para a reprodução da unidade agrícola e da família. Já a agricultura empresarial é essencialmente baseada no capital financeiro e industrial, expandindose através do aumento de escala, com produção altamente especializada e voltada para o mercado. Os agricultores empresariais tornamse ativamente dependentes dos mercados, enquanto os camponeses buscam maior autonomia. A agricultura capitalista ou corporativa de grande escala, por sua vez, engloba uma rede extensa de empresas agrícolas de grande mobilidade, tem sua mão-de-obra quase que exclusivamente constituída de trabalhadores assalariados e produz em função da maximização do lucro. Em suma, o modelo agroexportador (Ploeg 2008). A figura 1, elaborada pelo mesmo autor, ilustra os três processos transitórios que se inserem entre esses três grupos, sendo eles a industrialização, a recampesinização e a desativação. O primeiro consiste na introdução, na produção agrícola, em fatores de crescimento Figura 1. Relação entre tipos de agricultura e os Processos transitórios
artificiais, como adubos químicos, agrotóxicos e organismos geneticamente modificados, de modo que os alimentos deixam de ser produzidos e processados e passam a ser projetados. O segundo representa o aumento no número de camponeses, seja pelo influxo exterior ou pela reconversão de agricultores empresariais, com o intuito de conquistar maior autonomia, ao mesmo tempo em que a organização e o desenvolvimento das atividades produtivas se distanciam cada vez mais dos mercados. O terceiro, por fim, implica na contenção, ou ainda, na redução progressiva dos níveis de produção agrícola, quando os recursos antes destinados a ela são reinvestidos em outras atividades. O processo de recampesinização/descampesinização se insere nessas dinâmicas como um gradiente, ou seja, a partir de incentivos internos e externos à família e das interfaces que se dão entre os atores, a família pode se aproximar mais da agricultura camponesa, em momentos de produção mais diversificada e maior afastamento da hegemonia do tabaco, ou da agricultura empresarial, em momentos de maior especialização na fumicultura. Metodologia A presente pesquisa utilizou informações contidas no banco de dados sobre o tabaco, advindo de 960 questionários realizadas pela equipe de ATER, em visitas de diagnóstico as famílias produtores de tabaco dentro dos municípios de Dom Feliciano, Chuvisca, Camaquã, Cerro Grande do Sul, Barão do Triunfo, São Jerônimo e General Câmara, todos situados no território Centro Sul/RS. Com base no referencial teórico foram utilizadas apenas as informações presentes no questionário que tiveram relação com os projetos de especialização e diversificação dos agricultores, elencadas no quadro 1. Para o estudo das relações entre os indicadores contidos nas perguntas do questionário os dados foram trabalhados dentro do programa SPSS. É importante ressaltar que, devido ao fato de nem todas as perguntas terem sido respondidas por todos os entrevistados, o número de respondentes varia de questão para questão. Quadro 1. Relação entre os indicadores utilizados, o que eles significam e suas escalas de variação
Fonte: Autores 2018. No caso dos dados referentes à especialização, foram realizadas análises descritivas de frequência, de acordo com a associação entre as variáveis apresentadas no quadro 1 e, ademais, testes de quiquadrado para avaliar a significância entre as categorias de variáveis exibidas. Já no caso dos dados referentes à diversificação, foi feita descrição sem a utilização de análises estatísticas. Para uma melhor compreensão dos dados analisados, novas informações de campo foram obtidas através de observação participante durante a realização de um estágio de conclusão do curso de Agronomia, que compreendeu o período de agosto a dezembro de 2016, no escritório de ATER do munícipio de Camaquã, Rio Grande do Sul. O município foi escolhido como amostra por ser, segundo o IBGE (2017), o maior em população dos sete municípios que compõem o banco de dados 66 mil habitantes, sendo cerca de 13.400 residentes do meio rural e, segundo a Afubra (2016), o 9º maior produtor nacional de tabaco. Segundo Malinowski (1978), a observação participante consiste na participação efetiva do pesquisador na rotina dos informantes, a fim de compreender a fundo as situações vivenciadas por eles em seu dia-a-dia. Para o autor, a inserção do pesquisador em determinada comunidade permite a ele captar os modos de pensar e agir de seus informantes e, assim, atingir resultados convincentes para suas indagações a respeito dos mesmos e do contexto em que se encontram. Durante o período de utilização dessa técnica, foi feito o acompanhamento integral das atividades de Extensão Rural realizadas, as quais envolvem ações como visitas a propriedades rurais, atendimento aos agricultores no escritório de ATER, realização e participação de reuniões com atores envolvidos nas dinâmicas do meio rural do município - agentes da prefeitura, cooperativas e agricultores, organização de feiras e excursões de interesse dos agricultores, entre outras. No presente estudo, a observação participante foi utilizada para a compreensão das dinâmicas que caracterizam o universo da produção de tabaco e permitir que fossem encontradas algumas respostas capazes de levar à percepção das motivações dos agricultores, expandindo os conhecimentos acerca da realidade da fumicultura no território Centro Sul para além do que é possível perceber com base apenas nas informações do banco de dados. Através das informações adquiridas durante a utilização dessa técnica, foi possível compreender o contexto daqueles dados. Resultados e discussões Buscou-se identificar os elementos que caracterizam os projetos de especialização, representado pela hegemonia do tabaco, e de diversificação, representado pela busca dos agricultores por maior autonomia através da produção diversificada de cultivos e criações junto ao cultivo do tabaco. Em relação a especialização, os indicadores apresentados na sequência foram subdivididos em categorias conforme a representação da renda do tabaco no orça- mento familiar, dado que o mesmo indica o grau de especialização de renda das famílias entrevistadas. A tabela 1 mostra a relação existente entre a representação da renda do tabaco no orçamento dos agricultores e os anos na atividade. No que diz respeito à relação entre os indicadores, foi verificado através do teste qui-quadrado (x²(16)=23,1; p < 0,05) que ambos possuem, de fato, associação. Tabela 1. Relação entre a representação da renda do tabaco no orçamento e os anos na atividade
Fonte: Autores 2018. Percebe-se que, em todos os níveis de representação, a faixa mais expressiva de tempo na atividade é a de 11 a 20 anos, situação encontrada em 243 das 700 entrevistas realizadas. Esse dado pode ter relação com o fato de que muitas das famílias que resolvem investir no tabaco são compostas por pessoas relativamente jovens, muitas vezes havendo na propriedade crianças e adolescentes que podem ajudar na lavoura. Como a atividade requer muita mão-de-obra, ela não é tão atrativa para casais de idade mais avançada a não ser que hajam outras pessoas mais jovens na propriedade que possam fazer o serviço considerado pesado. Além disso, casais mais jovens ainda estão em busca de condições de vida mais estáveis, muitas vezes com planos de construir sua casa ou expandir suas terras, e tais projetos requerem um ganho monetário mais alto, possibilitado – em boas condições de produção – pela fumicultura (Chayanov 1974). Os dados evidenciam a importância do tabaco na geração de renda para as famílias. Para a grande maioria dos produtores, o tabaco representa um montante considerável do orçamento familiar, como pode ser visualizado na última coluna da tabela 1. Ademais, chama a atenção também o fato de mais de quatorze por cento dos produtores dependerem exclusivamente da atividade tabaco. Esta categoria, totalmente especializada, aparece como aquela onde há maior proporção de produtores a mais tempo dedicados a atividade. A tabela 2 relaciona a representação da renda do tabaco no orçamento dos agricultores e a quantidade de tabaco plantada no ano de 2013. No que diz respeito à relação entre os indicadores, o teste qui-quadrado (X²(16)= 27,5; p < 0,05) demonstrou que ambos possuem, também, associação. Tabela 2. Relação entre a representação da renda do tabaco no orçamento e a quantidade de tabaco plantada em 2013
Fonte: Autores 2018. É perceptível, em todos os níveis de representação, que a faixa com maior expressão de quantidade plantada refere-se à faixa de até 50.000 pés. Segundo dados da Afubra (2017), o tamanho médio das propriedades dos fumicultores integrados da região Sul do Brasil é de 14,2 hectares, enquanto a quantidade média de pés de tabaco plantados por hectare é de 15 mil. Porém, levando-se em consideração o efeito das políticas de redução do tabaco provenientes da CQCT, a área destinada à fumicultura vem diminuindo dentro das propriedades. Um estudo realizado por Barrero et al. (2003), mostra que antes mesmo da implemen- tação de tais políticas a área média destinada ao tabaco dentro das propriedades gaúchas era de 2,6 hectares, ou seja, uma área correspondente a cerca de 40 mil pés. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Cotrim (2013) relaciona a quantidade de pés plantados à capacidade de secagem nas estufas caseiras e aponta que cada estufa tradicional da região Centro Sul/RS requer 36 mil pés de tabaco. A tabela 3 apresenta a relação existente entre a representação da renda do tabaco no orçamento dos agricultores e a integração com a indústria fumageira. O teste qui-quadrado foi novamente realizado (x²(4)= 23,1; p < 0,05), demonstrando que ambos os indicadores possuem associação. Tabela 3. Relação entre a representação da renda do tabaco no orçamento e a integração com a indústria
Fonte: Autores 2018. Nota-se que apenas onde a representação da renda do tabaco no orçamento é inferior a 25% a integração com a indústria não é predominante; e que quanto maior a representação, maior a predominância da integração. Conforme informações coletadas durante a utilização da técnica de observação participante é possível relacionar esse fato com a característica apresentada pelas indústrias fumageiras de aceitarem apenas o tabaco seco como pagamento pelos insumos fornecidos aos agricultores. Quando, por ventura de eventos climáticos ou condições de produção, os fumicultores vivenciam uma frustração de safra, não produzindo assim o que era esperado pela indústria, gera-se uma dívida. Tais dívidas são difíceis de se quitar devido ao fato de que, a cada ano, o ciclo de adquirir insumos e produzir tabaco para pagá-los se renova. Assim, chega um momento em que a família produtora precisa fazer uso de força judicial a fim de quitar suas dívidas e, tomando essa atitude, fica “marcada”, não sendo mais aceita para contratos, tanto com a indústria que processou como com as demais. Esses fumicultores, impossibilitados de vender tabaco para qualquer uma das indústrias, geralmente não têm condições, tanto financeiras como produtivas, para abandonar completamente a atividade, então passam a vender sua reduzida produção para atravessadores. Como a venda para atravessadores não apresenta a mesma segurança que a venda garantida para uma indústria, a maioria dos fumicultores que se encontram nessa situação não dependem tanto do tabaco para seu sustento. Cotrim e Canever (2016) confirmam isso e explicam a lógica dos atravessadores, afirmando que os produtores integrados às indústrias produzem um excedente de tabaco para, além de cumprirem seus contratos, conseguirem uma renda extra vendendo para os atravessadores. Segundo os autores, essa estratégia funciona em anos nos quais o tabaco está escasso, o que faz com que os preços se elevem; porém em anos de oferta volumosa, esses produtores podem não conseguir sequer pagar seus custos de produção. Na tabela 4 é possível verificar a relação entre a representação da renda do tabaco no orçamento dos agricultores e a existência de dívidas com a indústria fumageira. Assim como nas relações apresentadas anteriormente, a associação entre esses indicadores foi confirma- da pelo teste qui-quadrado (X²(4) = 14,9;p < 0,05). Tabela 4. Relação entre a representação da renda do tabaco no orçamento e a existência de dívidas com a indústria
Fonte: Autores 2018. Percebe-se que, em todos os níveis de representação, o que apresenta a maior percentagem de dívidas é o de 100%; porém a ausência de dívidas predomina em todos os níveis. Seguindo a lógica da análise feita sobre a tabela 3, o primeiro passo dado pelos fumicultores para quitar suas dívidas é investir o máximo possível de área e mão-de-obra na fumicultura, na tentativa de escapar das consequências que seguem uma batalha judicial contra uma indústria fumageira. De maneira geral, a análise dos dados demonstra que, para a maioria dos produtores entrevistados, o tabaco representa acima de 75% da renda familiar, sendo que essa faixa apresenta como características a experiência na atividade de até 20 anos e plantações de até 50.000 pés de tabaco, possuindo integração com a indústria fumageira e a inexistência de dívidas com a mesma. Através da realização do teste qui-quadrado, foi possível demonstrar que todos os indicadores possuem correlação com o grau de especialização de renda das famílias. A partir desses dados é possível caracterizar o projeto de especialização na cultura do tabaco do território Centro Sul/RS como sendo um projeto de famílias com suficiente mão-de-obra disponível, altamente dependentes do tabaco para a obtenção de renda e de- tentores de um vasto conhecimento acerca dessa cultura, dado que a maioria produz tabaco há pelo menos 10 anos. Além disso, constatou-se que conforme aumenta a representação do tabaco na renda familiar, maior é a predominância da integração, assim como maior é a porcentagem de famílias endividadas. Para a caracterização do projeto de diversificação, foram selecionados os seguintes indicadores: a representação do autoconsumo na alimentação da família, a produção de base ecológica, a área com potencial para a diversificação e o número de espécies que compõem a diversificação de frutíferas e olerícolas. Todos os indicadores se reúnem descritos na tabela 5. Assume-se que o projeto de diversificação desses agricultores se caracteriza por uma maior representação do autoconsumo, uma maior área com potencial para ser destinada à produção diversificada, um maior número de espécies cultivadas na propriedade e o investimento em sistemas de produção mais sustentáveis, como o de base ecológica. Tabela 5. Indicadores de diversificação
Fonte: Autores 2018. A partir dos dados da tabela 5, percebe-se que o projeto de diversificação entre os fumicultores ainda é pouco expressivo no território Centro Sul/RS: o autoconsumo representa menos de 25% do consumo total da família, não há produção de base ecológica, a área com potencial para a diversificação compreende de 26 a 50% da área total da propriedade e, no que diz respeito à diversificação de frutíferas e olerícolas, mais de 80% das propriedades apresentam menos de 10 espécies sendo cultivadas atualmente. Os motivos que levam os agricultores a se sujeitarem a um alto grau de dependência se baseiam principalmente nas vantagens da fumicultura: o alto preço pago pelo quilograma de tabaco, muito difícil de ser superado por outras atividades agropecuárias; a garantia de venda da safra; a comodidade de ter a empresa integradora responsável por levar os insumos até a propriedade, antes do início do cultivo, e buscar o tabaco seco no final da safra – principais características do SIPT; e a rentabilidade dessa atividade mesmo em terrenos inclinados e de área reduzida. Tais fatores são também citados por Vendruscolo (2017), em sua investigação acerca das percepções dos fumicultores sobre a cadeia produtiva do tabaco. A autora enfatiza ainda a importância que tem o fato de o cultivo de tabaco passar de geração para geração no Rio Grande do Sul, no Brasil, e como isso contribui para a crença de que nenhuma outra atividade superaria os lucros provenientes do tabaco. Como foi possível perceber durante a observação participante, quando uma família resolve deixar a atividade, a reconquista de sua autonomia enfrenta diversas barreiras. A primeira saída, mesmo quando a situação das famílias é a do endividamento, é a diversificação de cultivos e criações. Nesse sentido, a primeira grande dificuldade é encontrar uma alternativa tão rentável quanto o tabaco e que traga, assim como ele, bons retornos mesmo nos terrenos inclinados e de área reduzida que predominam nas regiões produtoras. Realizar outras atividades paralelamente ao tabaco requer espaço disponível e mão-de-obra suficiente para dar conta de todo o trabalho. Ademais, investir em uma nova atividade gera muitas incertezas para a família de agricultores, afinal, significa para ela aprender sobre um novo processo de produção, correndo o risco de obter baixa produtividade; apostar em um mercado incerto, sem venda garantida; e arriscarse ao endividamento, especialmente porque esses investimentos são geralmente feitos à base de empréstimos. Desta forma, o processo de diversificação normalmente se inicia com a produção para o autoconsumo, ou seja, a produção de alimentos destinada à alimentação da própria família. Utilizando dessa estratégia, a família primeiro se adapta a um novo sistema de produção, paralelamente reduzindo seus gastos com alimentos provenientes de fora, para que posteriormente possa comercializar o excedente. É uma forma de experimentar elementos do projeto social da diversificação. Segundo Grisa e Schneider (2008), o autoconsumo é considerado uma importante estratégia de reprodução social, além de ser uma ferramenta de preservação da identidade das famílias rurais e de manutenção de hábitos alimentares tradicionais - cultural e etnicamente. A comercialização, por sua vez, se mostra como o principal empecilho para a diversificação. Os mercados locais não estão preparados para absorver um grande aumento na quantidade de agricultores produzindo alimentos ao invés de tabaco, pois grande parte dos supermercados já têm seus fornecedores usuais, que muitas vezes transportam os produtos de outras cidades. Os agricultores diversificados têm dificuldades tanto em encontrar onde comercializar seus produtos como em transportar tais produtos para a área urbana, por falta de veículos adequados. Outro ponto deficiente é a articulação social entre os agricultores. Não havendo como fornecer produtos para os supermercados, os mesmos poderiam se organizar para vender em feiras, porém faltam cooperativas. Parece claro que os agricultores ainda precisam muito da orientação proveniente da Extensão Rural para encontrar caminhos alternativos. Entretanto, o próprio acesso a ATER é limitado, pois cada técnico se encontra respon- sável por em média 100 propriedades e poucos escritórios de extensão no Rio Grande do Sul possuem mais de cinco técnicos, tornando impossível o atendimento a todos os estabe- lecimentos rurais – que, em 2006, segundo o Censo Agropecuário, só no que diz respeito à Agricultura Familiar do estado, configuravam uma quantia de 378.353 unidades (IBGE, 2006). A realidade é que uma grande parcela da população rural do estado ainda vive isolada, sem conhecimento das instituições de ATER e sem saber que podem procurá-las. Os problemas de saúde consequentes da produção de tabaco configuram, na maioria dos casos, o principal motivo para a substituição da atividade. Como citado anteriormente, a substituição configura a ruptura completa dos agricultores com a hegemonia do tabaco, ocorrendo normalmente quando eles já foram tão prejudicados pelo cultivo que deixam de lado as necessidades para buscar condições de vida diferentes (Cotrim 2013; Corrêa 2017),esta tendência também é percebida por esta pesquisa. Como foi citado anteriormente, o manuseio das folhas de tabaco tanto durante a colheita como durante o processo de secagem, associado ao contato frequente com agrotóxicos, gera um sério quadro de problemas de saúde para as famílias dos agricultores. Junto com a defesa da importância da produção para o autoconsumo, a preservação da saúde dessas famílias configura a principal forma de incentivar a diversificação e, possivelmente, a substituição do cultivo de tabaco, assim como a principal vantagem de tais processos. Reunindo todas essas informações a respeito das dinâmicas que envolvem as famílias que produzem tabaco, é possível visualizar a arena de construção de projetos do território Centro Sul/RS. De um lado, temse agricultores altamente especializados na fumicultura, apresentando seus projetos de especialização. De outro, agricultores que buscam realizar seus projetos de diversificação, apesar de todas as dificuldades. Ambos os grupos se en- contram sob influência dos demais atores: os representantes das indústrias fumageiras e os profissionais de ATER, agentes da Chamada Pública de Diversificação. A tendência do projeto individual se aproximar do projeto social de diversificação configura um processo de recampesinização, enquanto a tendência do projeto individual se aproximar do projeto de especialização configura um processo de descampesinização (PLOEG, 2008). Como é possível verificar na Figura 1, entre os diferentes tipos de agricultura há pontos de intersecção, nos quais os agricultores apresentam características de ambos os tipos de agricultura pelos quais estão transitando, estejam eles em um processo de recampesinização ou de descampesinização. Uma família que decide plantar menos pés de tabaco em determinado ano, a fim de investir em outras atividades, está sujeita a não ter uma boa adaptação ao novo sistema de produção, ter dificuldades para conquistar espaço no mercado, ou não obter a rentabilidade desejada com a nova atividade, levandoa assim a tornar a investir (terra, recursos financeiros, mão de obra, etc) na fumicultura. Não se pode dizer que os projetos individuais de todos os agricultores, sejam eles especializados ou diversificados, são os mesmos. Ambos os projetos sociais analisados neste estudo consistem da interação de inúmeros projetos individuais, cada um com suas particularidades. Dos agricultores que fogem à regra de ambos os projetos, a maioria é altamente especializada no tabaco no que diz respeito à renda, mas altamente diversificada no que diz respeito à produção. Isso significa que, apesar da dependência financeira da fumicultura, grande parte dos alimentos consumidos pela família são produzidos por ela mesma. Ao se organizar dessa forma, a família garante que a maior parte da renda proveniente do tabaco seja investida em outros pontos que não só na subsistência, porém tal esforço requer que haja mão-de-obra e espaço suficientes na propriedade, o que não é o caso da grande massa de fumicultores da região. Projetos individuais deste tipo se encontram no caminho do meio entre os processos de recampesinização e descampesinização. A existência das indústrias fumageiras perpetua a expressividade do projeto de especialização na região, já que os benefícios que elas oferecem aos produtores integrados são vistos por eles como as principais vantagens para a adoção da atividade. Os profissionais de ATER, que por sua vez incentivam a diversificação de cultivos e criações, se esforçam para orientar os agricultores de maneira que seja possível compatibilizar seus projetos individuais com os recursos disponíveis em cada propriedade, porém dependem de recursos provenientes das Chamadas Públicas, tendo seu potencial de trabalho restringido. Como coloca a POA, para que haja a mudança social é necessário que vários atores façam uso de sua agência em prol de um objetivo comum. Essa ideia reforça a necessidade de se incentivar a articulação social a fim de impulsionar projetos sociais. É o entrosamento entre os atores das comunidades rurais que pode dar a eles tanto o poder de reivindicação por melhorias estruturais que lhes tragam melhores condições de vida, como a possibilidade de executar seus projetos da maneira como desejam. A partir dos resultados deste estudo, acredita-se que para que o projeto de diversifica- ção supere seus obstáculos de execução é necessária uma maior articulação social entre os atores que o defendem. Para tanto, esforços por parte das instituições de ATER e do poder público são necessários, principalmente pelo fato de haverem ainda tantas famílias rurais isoladas de qualquer assistência. A união dos agricultores diversificados serviria para dar ao seu projeto social uma voz mais ativa em busca de condições para a comercialização, principal dificuldade encontrada atualmente, e como forma de expor o imenso leque de problemas sociais e de saúde decor-rentes da produção de tabaco. Conclusões A partir dos dados referentes à produção de tabaco do território Centro Sul do Rio Grande do Sul, é possível caracterizar o projeto social de especialização na fumicultura como sendo um projeto de famílias com suficiente mão-de-obra disponível, altamente dependentes do tabaco para a obtenção de renda, detentores de um vasto conhecimento acerca dessa cultura, dado que a maioria produz tabaco há pelo menos 10 anos, e moradores de pequenas propriedades. Além disso, constatou-se que conforme aumenta a representação do tabaco na renda familiar, maior é a predominância da integração, assim como maior é a porcentagem de famílias endividadas. Os principais fatores que os levam a escolher e se manter nesse projeto são as vantagens oferecidas pelo SIPT e, mesmo quando desejam reduzir ou abandonar a produção, muitas vezes são forçados a continuar por causa das dívidas que já possuem ou pela dificuldade de acessar mercados diversificados O projeto social de diversificação se caracteriza por uma maior representação do autoconsumo, uma maior área com potencial para ser destinada à produção diversificada, um maior número de espécies cultivadas na propriedade e o investimento em sistemas de produção mais sustentáveis, como o de base ecológica. Porém, a partir dos dados analisados, percebe-se que esse projeto ainda é pouco expressivo no território, ou seja, o cultivo de tabaco continua hegemônico. O estudo revelou, especialmente na observação participante, que os principais motivos citados pelos agricultores para o seu desejo de deixar o cultivo de tabaco estão vinculados à penosidade do trabalho: o ciclo de produção longo e trabalhoso; a colheita escalonada e cansativa, principalmente por ser durante o verão; e a ocorrência de um amplo quadro de doenças provocadas pelo manuseio das folhas de tabaco e da frequente exposição a agrotóxicos. Razões como o endividamento e o interesse pela diversificação não só de produção como de renda, também foram citadas. Muitas famílias de fumicultores não produzem outras espécies de plantas nem mesmo para consumo próprio, por isso incentivar a produção para o autoconsumo é uma boa forma de dar início ao processo de diversificação nas propriedades, utilizando como justificativa a importância de aproveitar os recursos disponíveis no campo para aumentar a confiabilidade dos produtos consumidos pela família e assegurar a presença de uma boa variedade de alimentos na dieta familiar. O principal incentivo para a diversificação e, até mesmo, para a substituição do cultivo do tabaco é a preservação da saúde familiar, através da adoção de sistemas de produção mais sustentáveis ou, pelo menos, menos danosos para a sanidade dos agricultores. Porém muitas famílias esperam seus problemas de saúde chegarem ao limite para buscar melhores condições de vida. O processo de recampesinização/descampesinização não é linear. Uma família pode investir em outras atividades e, para tanto, plantar menos pés de tabaco em determinado ano; mas as outras atividades podem não dar certo ou não ser rentáveis o suficiente, fazendo com que a família volte a plantar uma quantidade maior de tabaco no ano seguinte. Acredita-se que o projeto de diversificação pode alcançar maior expressividade se houver maior articulação entre os atores que o defendem, tanto como forma de favorecer a sua busca por condições para a comercialização, principal dificuldade encontrada atualmente, como forma de expor o imenso quadro de problemas sociais e de saúde decorrentes da produção de tabaco. Incentivos para tal articulação precisam vir tanto das instituições de ATER como do poder público, dado que muitas famílias rurais ainda não têm acesso a qualquer tipo de assistência. Mas incentivos de comercialização podem vir também dos mercados locais, com estes favorecendo a produção local, para que os agricultores enxerguem alguma oportunidade de venda. De qualquer forma, a conclusão central deste estudo é que a diversificação continua sendo mais factível do que a substituição total do tabaco no território Centro Sul/RS, dada à enorme demanda por tabaco que ainda existe no mercado e aos vários obstáculos encontrados pelos agricultores que desejam abandoná-lo totalmente. _____________________ 1 Segundo Messias (2016), uma Chamada Pública é um procedimento específico de compra de bens ou serviços pela Administração Pública.ˆ 2 Segundo Sabourin (2005), a ideia de multifuncionalidade faz alusão às múltiplas funções da atividade agropecuária, que vão além de suas funções econômicas (produtiva e mercantil), englobando também suas funções sociais, ambientais e culturais.ˆ |
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