Eutopia. Revista de Desarrollo Económico Territorial N.° 16, diciembre 2019, pp. 141-158 |
Expansão do agronegócio no Brasil: diferentes discursos e dinâmicas socioeconômicas no Rio Grande do Sul*
Edmundo Hoppe Oderich**, Lilian de Pellegrini Elias*** y Paulo Dabdab Waquil**** * Este trabalho resultou da expansão de dados preliminares publicados em nota técnica no Boletim Geográfico do Rio Grande do Sul (Oderich e Waquil 2019), tendo sido complementado com dados e com a discussão sobre os diferentes discursos e dinâmicas socioeconômicas e de segurança alimentar relacionadas à expansão do agronegócio no Brasil. ** Programa de Posgrado en Desarrollo Rural en el Centro Interdisciplinario de Sociedad, Ambiente y Desarrollo (CISA- DE), Universidad Federal de Rio Grande do Sul (Brasil), edmundo1234@gmail.com, orcid.org/0000-0001-9405-6248.
Recibido: 31/08/2019 • Aceptado: 29/10/2019 •
Publicado: 20/12/2019 Resumo Desde o fim da década de 1990, a expansão da agricultura de commodities no Brasil tem gerado consideráveis transformações no uso da terra, condicionando fortemente dinâmicas socioeconômicas locais e regionais e gerando distintas interpretações a esse respeito. O presente trabalho apresenta os diferentes discursos sobre os efeitos locais da expansão desse novo “ciclo do agronegócio” e analisa aspectos socioeconômicos a ele relacionados no Rio Grande do Sul. Levando em consideração o grau de participação da produção de soja nas economias municipais do estado, identificamse indicadores socioeconômicos menos desejáveis nos municípios em que a soja tem maior relevância. A partir da análise da evolução do uso da terra, o trabalho examina ainda em que medida a expansão do agronegócio no Rio Grande do Sul pode estar associada a um aumento da insegurança alimentar. Palavras-chave: agronegócio; desenvolvimento; discurso; indicadores socioeconômicos; segurança alimentar Abstract Since the late 1990s, the expansion of commodity agriculture in Brazil has generated considerable transformations in land use, strongly conditioning local and regional socioeconomic dynamics and generating different interpretations in this regard. fte present paper presents the different discourses on the local effects of the expansion of this “agribusiness cycle” and analyzes the socioeconomic aspects related to it in Rio Grande do Sul. Taking into account the degree of participation of soybean production in the municipal economies, the results show less desirable socioeconomic indicators in the municipalities where soybeans are most relevant. From the analysis of the evolution of land use, the paper also examines the extent to which the expansion of agribusiness in Rio Grande do Sul may be associated with an increase in food insecurity. Introdução O fim da década de 1990 e o início dos anos 2000 marcaram o início de um novo ciclo de expansão do setor primário-exportador no Brasil. Na agricultura, os efeitos da eliminação da sobrevalorização do real em 1999 e o aumento da demanda internacional por commodities agrícolas determinaram as bases materiais para a conformação de um novo ciclo de acumulação que vigora desde então. Este novo ciclo, definido por Delgado (2012) como “economia do agronegócio”, tem como resultado o considerável crescimento da produção de soja, carnes, cana-de-açúcar e derivados da silvicultura (papel e celulose), que passam a figurar nos últimos anos entre os dez principais itens das exportações brasileiras. Dentre as principais commodities escaladas para equilibrar a balança comercial, a soja foi a que apresentou maior crescimento, tendo sua área de cultivo aumentada de 14 para 34 milhões de hectares entre 2000 e 2017 (IBGE 2018a) e chegando a ultrapassar 25% do valor total exportado (Brasil-MDIC 2018 Ao longo desse processo a produção de commodities agrícolas – sobretudo a soja – passou a ocupar um espaço cada vez maior tanto na geografia quanto na economia de centenas de municípios, sobretudo das regiões Centro-Oeste e Sul. As commodities agrícolas tornaramse, sem dúvida, um condicionante cada vez mais relevante para as dinâmicas sociais e ambientais dessas regiões. No entanto, se por um lado, criase um discurso em que a “economia do agronegócio” é associada ao crescimento e desenvolvimento econômico, por outro, há dúvidas sobre se os efeitos socioeconômicos nas regiões de expansão da produção de commodities agrícolas são de fato positivos. Frente a esse cenário, o presente trabalho procura identificar as diferentes perspectivas sobre os efeitos socioeconômicos locais da expansão do agronegócio no Brasil nas últimas duas décadas. Com este objetivo, a primeira seção apresenta os diferentes discursos encontrados nos meios jornalístico, político e acadêmico acerca do tema, apontando suas diferentes interpretações. A segunda e a terceira seções discutem os efeitos do “ciclo do agronegócio” diante de aspectos demográficos, socioeconômicos e no que se refere à segurança alimentar. A segunda seção apresenta resultados de testes estatísticos que buscaram avaliar aspectos demográficos e socioeconômicos dos municípios do Rio Grande do Sul em relação a participação da produção de soja em suas economias. Os dados mostram a distribuição dos municípios do Rio Grande do Sul desde 2000 segundo este critério, apontando diferenças significativas na dinâmica demográfica, nos níveis de concentração de renda e de desenvolvimento humano dos municípios com baixa e alta importância da soja em suas economias. Desta forma, o trabalho busca agregar novos dados sobre a recente expansão agrícola brasileira e seus impactos locais. A terceira e última seção, por sua vez, explora as interconexões entre o movimento de aumento da produção de soja e da silvicultura no Rio Grande do Sul e a diminuição de diversos cultivos alimentícios, problematizando, a partir daí, questões referentes à Segurança Alimentar. Os diferentes discursos sobre os efeitos locais da expansão do “ciclo do agronegócio” O tema da expansão da produção de commodities agrícolas no Brasil é abordado de diferentes perspectivas, em diferentes espaços de circulação de ideias. Em se tratando dos efeitos locais dessa expansão, identificamse discursos distintos que podem ser agrupados em diferentes narrativas, perpassando o debate acadêmico, o ambiente jornalístico e a esfera político-institucional. As principais diferenças giram menos em torno do desempenho econômico e mais em torno das dinâmicas sociais desencadeadas por essa expansão agrícola, residindo principalmente na compreensão subjacente acerca de suas contribuições para o desenvolvimento do país. Como ponto de partida, parece não haver divergências quanto à existência de uma correlação positiva entre a expansão da área cultivada e o aumento da renda nos municípios e regiões em questão. Mesmo considerando a heterogeneidade de pontos de vista em relação ao tema, não se identificam estudos consistentes que contestem o fato das commodities agrícolas avolumarem economias locais e regionais. Entre os principais trabalhos que sustentam essa afirmação está o estudo realizado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) sobre a evolução da renda das regiões produtoras agrícolas de soja, cana-de-açúcar, café e milho. O levantamento mostra que, de fato, o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) total e per capita nos municípios dessas regiões foi superior às médias estaduais e nacional no período de 2010 a 2014 (Brasil-MAPA 2016). Em geral, partindo desse fato o discurso dominante indica que a presença e, ou, a expansão da agricultura de commodities tem sido um fator chave para o desenvolvimento1 de diversos municípios e regiões do país, sobretudo nas fronteiras agrícolas do cerrado no Centro-oeste e no MATOPIBA2. Tratase de uma perspectiva que tende a fazer uma distinção pouco criteriosa entre as ideias de desenvolvimento e crescimento, com frequência considerando que melhorias nas condições de vida da população local serão consequências naturais da expansão produtiva. No meio acadêmico, contudo, tal perspectiva parece ser minoritária entre os estudos que tratam dos efeitos locais da expansão territorial das commodities agrícolas, mas verificase que alguns trabalhos apresentam narrativa semelhante. Entre eles, é possível apontar os trabalhos de Megido (2014a; 2014b), que propõe o conceito de agrossociedade ao tratar da capacidade do processo de expansão do agronegócio de reduzir desigualdades sociais, reduzir a fome e gerar melhorias na infraestrutura. Já o estudo de Bolfe et al. (2016), ao tratar dos impactos da expansão agrícola no MATOPIBA, conclui que a produção agrícola tem um papel de destaque no aumento da renda, na geração de emprego e na melhoria da qualidade de vida. No mesmo sentido, Colussi, Alves-Castro y Weiss (2015, 384) afirmam que a região “caminha [...] para a evolução natural da agricultura”, possibilitando maior uniformidade na distribuição da riqueza e “resultando em desenvolvimento econômico, social e humano dos municípios”. Frequentemente, estudos como esses embasam veículos de comunicação mais abrangentes, transmitindo uma imagem que associa diretamente a expansão das commodities à ideia de desenvolvimento. Recorrentes reportagens sobre o tema (Estadão 2011; Globo Rural 2013; Exame 2011; Folha de São Paulo 2017a; Jornal Hoje 2017; Zero Hora 2015) exprimem um sentido claro de positividade ao exporem efeitos da expansão da agricultura em cidades e regiões de fronteira agrícola, por vezes de modo pouco criterioso. O agronegócio mudou a cara de muitas cidades no interior do Brasil. [...] Essas cidades foram plantadas no meio de lavouras e se beneficiam do dinheiro do agronegócio. [...] O dinheiro das exportações faz surgir luxos no interior do Brasil, onde ruas parecem coisa de cidade americana, sem muros, nem cercas (Jornal Hoje 2017). Sobressaemse também os recentes investimentos em marketing de massa realizados por organizações representativas do setor e por veículos de comunicação de grande amplitude. Destacamse a Campanha de Valorização Institucional do Agronegócio promovida pela Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG); a campanha Agro é Tudo, desenvolvida e veiculada pela Rede Globo; bem como os trabalhos da Associação Brasileira de Marketing Rural (ABMR) e do Núcleo de Agribusiness de Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Tais iniciativas parecem consolidar a difusão generalizada de uma interpretação carente de senso crítico. O aprofundamento dado por Romão (2006) a este tema mostra como o discurso no marketing do agronegócio constrói “para si mesmo um lugar de prestígio, enunciando uma suposta potência e criando um imaginário de vínculo com a vida do cidadão comum”, associando as commodities agrícolas à empregabilidade de muitos trabalhadores, a um enriquecimento homogêneo das regiões em que estão presentes, ao desenvolvimento e à prosperidade. No cenário político institucional, por sua vez, alguns atores sociais ganham destaque na difusão de um discurso que enaltece as commodities agrícolas como carreadoras do desenvolvimento e de avanços civilizatórios em regiões até então fora de cena no país. Os exemplos mais contundentes estão nos discursos das lideranças da Frente Parlamentar da Agropecuária e de organizações representativas do agronegócio a ela vinculadas, entre elas a ABAG, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a União Democrática Ruralista (UDR), a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA) e a Sociedade Rural Brasileira (SRB), bem como de alguns setores do poder executivo. Em síntese, a narrativa dominante sobre os efeitos locais da expansão da agricultura de commodities é permeada por um sentido de positividade, sendo verificada nos noticiários gerais e especializados de maior circulação nacional, no meio político institucional e no ambiente acadêmico. Evidentemente, o ímpeto dos discursos e o aprofundamento das análises varia de acordo com o ambiente em que são propagados. No entanto, o elemento agregador nesses discursos parece ser o fato de não haver espaço para questionamentos acerca da guia central para o desenvolvimento das regiões em questão, estando consolidada a preponderância da produção das commodities agrícolas. Assume-se que eventuais problemas sociais, como a precariedade de serviços básicos de saúde, saneamento e infraestrutura, seriam temporários, decorrentes do crescimento acelerado, e tendem a se resolver com o passar do tempo. Diferentemente da narrativa dominante, no âmbito dos estudos acadêmicos é possível encontrar análises que questionam as transformações sociais, territoriais e ambientais decorrentes do aumento da produção de commodities agrícolas. Os discursos que permeiam esta perspectiva crítica, no entanto, são mais heterogêneos, em certos aspectos até divergentes. Da mesma forma que na narrativa anterior, tratase de uma perspectiva manifestada em diferentes meios e por diferentes atores, entre eles: movimentos sociais, organizações nãogovernamentais e parlamentares (estes com bem menos expressividade que na perspec- tiva anterior). No meio acadêmico, os estudos mais atentos às dimensões locais e territoriais do tema estão nos campos da geografia, da saúde e de algumas áreas mais híbridas que circundam a economia. No campo da geografia tem havido uma conjugação de esforços para compreender as novas dinâmicas socioespaciais nas assim denominadas cidades e regiões produtivas do agronegócio. Destacase o trabalho de Elias e Pequeno (2007, 25), que, observando diversos municípios do MATOPIBA e de outros estados da região nordeste, adotando a moradia como principal variável, mostra como a “difusão do agronegócio se dá de forma social e espacialmente excludentes”, na medida em que fragmenta o espaço agrário e acentua as desigualdades. No mesmo sentido, Frederico (2011) sugere que o estabelecimento de grandes empresas nas cidades do agronegócio reorganiza o território de tal modo que a geração de riqueza se torna cada vez mais concentrada e a pobreza cada vez mais difundida. Tratase, conforme a síntese de Castillo et al. (2016, 281), de um modelo de desenvolvimento que reforça “heranças socioespaciais reprodutoras de desigualdades, como a estrutura fundiária altamente concentrada, [...] o controle oligopolizado de recursos básicos como a água, [...] e a precarização do trabalho”. As reflexões desses autores serão retomadas com maior profundidade no capítulo seguinte. Ainda no campo da geografia, porém de modo mais disperso, outros trabalhos sinalizam impactos sociais negativos. A investigação de Bezerra (2008) aponta para extrema precarização do trabalho em áreas de expansão da agricultura de commodities na região Nordeste. Já os trabalhos de Rodrigues e Alencar (2011) e de Cerqueira (2016) indicam processos de concentração e de acentuação da pobreza e da exclusão social concomitantes ao crescimento do PIB e à melhoria do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em áreas de expansão da soja e outras commodities agrícolas no Maranhão e no Tocantins, respectivamente. No mesmo sentido, o estudo de Oliveira (2008) sugere o crescimento das desigualdades no Noroeste de Minas Gerais, enquanto os trabalhos de Caribé (2009) e Mondardo (2010) discorrem acerca do mesmo processo e sobre o paradoxo da geração de pobreza como consequência da territorialização do agronegócio no oeste baiano. Em sintonia com tais estudos, a tese de Campos (2009), a partir de um estudo de caso no município de Cruz Alta (RS), também associa o agronegócio ao aumento da pobreza e da exclusão em seus territórios, sobretudo para o gênero feminino. No campo da saúde ocupacional, estudos de caso tem indicado uma correlação positiva entre a expansão da produção de commodities agrícolas e o aumento do número de acidentes de trabalho (ATs). Pignati e Machado (2011), por exemplo, verificaram que em torno de 70% dos ATs do Mato Grosso estão relacionados às cadeias produtivas da agropecuária, e que em sentido oposto à média nacional, entre 1998 e 2005 o estado duplicou a quantidade anual de ATs. No mesmo período, o estado do Mato Grosso mais do que duplicou a área plantada de soja, assumindo o posto de maior produtor nacional (IBGE 2018a). Em outro estudo, realizado no polo produtor e exportador de frutas tropicais da Chapada do Apodi (CE), Pessoa e Rigotto (2012) salientam, entre outras questões, o aumento do uso de agrotóxicos e os problemas agudos e crônicos decorrentes da exposição de trabalhadores aos mesmos. Estudos reunidos no dossiê da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO 2012) verificaram também a presença de resíduos de agrotóxicos em 100% das 62 amostras de leite materno coletadas no município de Lucas do Rio Verde (MT), reconhecido pela expressiva produção de soja, bem como a contaminação por agrotóxicos de água de consumo humano em diversos estados do país. Outra pesquisa ainda mais recente detectou a surpreendente contaminação da água por agrotóxicos de 25% das cidades brasileiras (Apublica 2019). Cabe lembrar que a expansão da produção agrícola brasileira no último período acarretou na elevação do consumo de agrotóxicos, tornando o país o maior consumidor mundial desses produtos desde 2008 (ABRASCO 2012). Em áreas mais híbridas do conhecimento, como agronegócios e desenvolvimento regional, também são encontrados estudos acerca dos impactos locais da expansão da produção de commodities. Os resultados obtidos por Cunha (2008) a partir do cruzamento de diversos indicadores econômicos e sociais, por exemplo, confirmaram a hipótese de que o crescimento da produção de soja no Mato Grosso entre 1995 e 2005 não representou desenvolvimento econômico efetivo. Para o autor, A expansão da soja no Estado revelou um paradoxo: se, por um lado, a dimensão econômica pode ser considerada um “sucesso”, por outro, não se pode afirmar o mesmo em relação à dimensão social, cujos indicadores revelaram uma medíocre distribuição de renda e riqueza (Cunha 2008, 11). No campo da administração, o estudo de Rosa, Ruediger e Riccio (2009) procurou avaliar o impacto socioeconômico do agronegócio em nível local através da comparação de indicadores de cinco municípios da fronteira agrícola dos estados do Mato Grosso e Bahia com outros cinco municípios espelho (isto é, nos quais a principal contribuição provinha do setor industrial). De acordo com os autores, os resultados não sinalizaram “que o agronegócio tenha, de fato, um efeito mais modernizador sobre a região de fronteira agrícola do que outras atividades econômicas”, ainda que os municípios analisados tenham se tornado polos de atração demográfica (Rosa, Ruediger e Riccio 2009, 13). Por fim, cabe mencionar ainda dois estudos vinculados à EMBRAPA. Ainda que, de modo geral, a pesquisa agropecuária da instituição tenha sustentado o modelo agrícola em expansão, o estudo conduzido por Neder (2014, 648) indica que as recentes transformações na estrutura produtiva brasileira, expressas na ampliação dos monocultivos de soja e cana-de-açúcar, tem impactado negativamente os indicadores sociais no meio rural, ao mesmo tempo em que geram efeitos de “desestruturação da pequena propriedade familiar, incluindo rebatimentos de tendência a esvaziamento da população rural”. Segundo o autor, [...] a cultura de soja aparentemente está tendo um efeito perverso do ponto de vista social, no sentido de um impacto positivo sobre a proporção e o número de pobres no meio rural assim como a ampliação do número de domicílios desocupados e redução de domicílios da agricultura familiar (Neder 2014, 351). As conclusões do autor, incluídas em uma das publicações recentes mais contundentes da instituição, parecem estar relacionadas não só à tese do desenvolvimento agrário bifronte – de que a concentração da produção tem empurrado um grande conjunto de pequenos estabelecimentos para a marginalização –, como também à tese da ativação de uma relação perversa que dificulta a sucessão geracional nos estabelecimentos rurais. Ambas as teses compõem as sete formulações de Buainain et al. (2013) para caracterizar o que denominam de nova fase do desenvolvimento agrário brasileiro. Ainda no âmbito da EMBRAPA, cabe mencionar a nota técnica da instituição a respeito da renda e da pobreza rural na região do MATOPIBA (Alves, Souza e Miranda 2015). Frente a situação de expansão agrícola em que se encontra a região, a instituição entende que a ação do mercado tende a provocar a venda ou o abandono de grande parte dos estabelecimentos de menor porte, mostrando sintonia entre o prognóstico das teses mencionadas acima e uma realidade concreta específica. As diferentes narrativas acerca da recente expansão da agricultura de commodities e seus efeitos locais e regionais mostram que o tema está inserido em uma vasta arena de disputa, perpassando o ambiente acadêmico, entidades representativas, movimentos socioambientais, a política institucional, entre outros. Enquanto o discurso dominante ressalta o potencial de crescimento econômico, outras perspectivas sugerem que, a despeito dos impactos positivos sobre indicadores econômicos, a expansão da produção de commodities agrícolas está relacionada ao agravamento da pobreza, da desigualdade, entre outros efeitos sociais indesejados. De todo modo, são bastante escassos estudos que apresentem evidências mais robustas, sustentados por bases de dados amplas e complementadas por análises qualitativas, que permitam conclusões mais abrangentes e seguras sobre o tema. Aspectos socioeconômicos e demográficos dos municípios dependentes da soja no Rio Grande do Sul Principal expressão do “ciclo do agronegócio” no Rio Grande do Sul, a produção de soja apresentou uma considerável ampliação de 3,0 para 5,5 milhões de hectares desde o ano 2000. Em termos econômicos, o valor da produção de soja somou R$ 18,2 bilhões em 2017, equivalente a 4,8% do PIB estadual (IBGE 2018a). Se considerados os municípios onde a soja efetivamente é produzida, observase uma relevância econômica ainda mais acentuada. Visando contribuir com o debate apresentado na seção anterior, nesta seção procurouse identificar eventuais dinâmicas e situações socioeconômicas possivelmente associadas à expansão da agricultura de commodities no Rio Grande do Sul. Metodologicamente, adotouse como variável de partida o valor da produção de soja e a parcela ocupada pelo grão na composição das economias municipais. Evidenciose, assim, o aumento da participação da soja no PIB dos municípios do estado desde o ano 2000. A partir daí os municípios foram divididos em 5 estratos segundo a relevância da produção de soja em suas economias. Os resultados confirmam o expressivo aumento do cultivo e da participação econômica da soja nos municípios do Rio Grande do Sul. Conforme indicado na tabela 1, entre 2000 e 2016 o número de municípios produtores passou de 346 para 415, dentre os 496 existentes. A tabela confirma também o crescimento da fatia do PIB representada pela produção de soja na maioria dos municípios. Analisando a variação da distribuição dos municípios nos diferentes estratos, percebese que, entre 2000 e 2016, o maior incremento se deu no grupo de municípios em que a participação econômica da soja é alta e altissimamente relevante. Juntos, esses dois estratos passaram de 80 para quase 200 municípios. Em sentido inverso, os grupos de municípios que apresentaram maior redução foram os não produtores e aqueles com baixa relevância do grão em suas economias. A distribuição espacial desses municípios é apresentada na figura 1 em três mapas referentes aos anos de 2000, 2010 e 2016 (ano mais recente com dados do PIB municipal disponíveis), possibilitando melhor visualização de sua evolução temporal. Em termos espaciais, a figura 1 mostra que o aumento da participação da soja nas economias municipais do Rio Grande do Sul foi, com exceção da encosta do nordeste e do extremo norte da região litorânea – regiões de grande densidade demográfica -, um processo generalizado. Em se tratando dos municípios altamente dependentes da soja, percebese que em 2000 estavam concentrados principalmente no planalto médio e regiões adjacentes. Já em 2016, é possível notar que diversos municípios de regiões anteriormente consideradas inaptas para o cultivo de soja – serra do sudeste e campanha – passaram a têla como um importante componente de suas economias. A partir da estratificação apresentada na seção anterior, buscouse examinar se municípios em que uma única commodity agrícola representa mais que 15% do PIB possuem indicadores e dinâmicas sociais semelhantes entre seus pares e distintas em relação aos demais. Para tanto, procedeuse à análise estatística (Testes T de Student) para verificar eventuais diferenças nas dinâmicas demográficas, no PIB per capita, no IDH e na concentração de renda dos municípios com alta relevância da soja em comparação com aqueles em que a produção do grão é pouco relevante. Os dados da produção de soja, do PIB e do PIB percapita municipais foram obtidos junto ao IBGE (2018a; 2018b). Os demais indicadores foram obtidos junto ao Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil (2018). O primeiro indicador analisado foi o crescimento demográfico, constatandose que os 194 municípios com participação da soja acima de 15% de PIB em 2016 apresentaram, em média, variação negativa – redução populacional – de 3,1% entre 2000 e 2016. Em sentido oposto, o Rio Grande do Sul apresentou, no mesmo período, um crescimento populacional de 10,8%. Tratase, portanto, de um forte indício de que o aumento do peso da soja nas economias locais está associado a processos de esvaziamento populacional e migração interregional. Foram verificadas também diferenças em relação aos demais indicadores socioeconômicos quando comparados os grupos de municípios produtores de soja com baixa (0% a 5%) e aqueles com alta e altíssima (acima de 15%) participação da soja no PIB. Cabe mencionar que a comparação entre esses dois grupos buscou identificar eventuais aspectos sociais comuns dos municípios cuja economia é centralmente determinada pela produção de soja. Para tanto, tais municípios foram comparados a outro conjunto de municípios também produtores de soja, mas com baixa participação do grão em suas economias, mostrandose economicamente muito mais heterogêneos e geograficamente muito mais distribuídos. Podese supor, no entanto, que de modo geral os municípios com baixa participação da soja em suas economias apresentam uma matriz econômica mais diversificada que aqueles altamente dependentes da soja. Conforme indicado na tabela 2, a diferenças encontrada entre o PIB per capita médio dos dois grupos não se mostrou significativa. No entanto, foi possível perceber diferenças significativas entre o IDH médio (a um alfa de 10%) e o Índice de Gini médio (a um alfa de 1%) dos dois grupos, revelando que municípios com forte peso da soja em suas economias apresentaram níveis de desenvolvimento humano menos desejáveis e maior concentração de renda. Especificamente sobre a esfera econômica, surpreende o fato dos municípios com maior participação da soja em suas economias não terem apresentado um PIB per capita significativamente superior, sobretudo considerando que, conforme apresentado na primeira seção, as principais divergências em relação aos efeitos locais da expansão do agronegócio dizem respeito a seus aspectos socioespaciais e ambientais, com poucos questionamentos em relação ao seu suposto potencial econômico. Considerando ainda o caso específico Rio Grande do Sul, o fato de que os municípios com alta dependência da soja tiveram redução populacional torna ainda mais questionável a não diferença entre o PIB per capita dos grupos de municípios analisados. Além disso, merece atenção o fato de que o aumento generalizado da dependência da soja indica provável diminuição da diversificação de atividades econômicas dos municípios, o que pode vir ensejando um processo de vulnerabilização das economias locais. De qualquer maneira, ainda que o PIB per capita tivesse se mostrado superior nos municípios com maior relevância da soja, o fato das diferenças das médias do IDH e do Índice de Gini serem estatisticamente significativas permitiria, por si só, relativizar o potencial econômico que a produção de soja supostamente teria nos municípios do estado. Em síntese, os resultados aqui apresentados não endossam o senso de positividade de grande parte do discurso jornalístico, acadêmico e político sobre os efeitos da expansão do agronegócio no Brasil, reforçando a questão: que vantagens a expansão da agricultura de commodities tem trazido aos municípios e regiões em que tem ocorrido? Ainda que ferramentas estatísticas sejam, por si só, incapazes de captar plenamente as múltiplas dimensões de um processo socioeconômico tão complexo como o da expansão da agricultura no Brasil, os resultados aqui encontrados para o estado do Rio Grande do Sul não sugerem vantagens em termos de desenvolvimento humano, renda ou igualdade social associadas à presença da soja nas economias locais. Pelo contrário, indicam que o “ciclo do agronegócio”, caracterizado, entre outros, pelo aumento da participação da soja nas economias municipais do Rio Grande do Sul, pode estar associado a processos de exclusão social (considerando o IDH), econômica (considerando o Índice de Gini) e espacial (considerando a redução populacional, provavelmente gerada por emigração). Diminuição dos cultivos alimentícios: os efeitos do “ciclo do agronegócio” na segurança alimentar Para além dos indicadores socioeconômicos analisados na seção anterior, as expressivas transformações no uso da terra no Rio Grande do Sul sugerem atentar para outra importante dimensão de qualquer processo de desenvolvimento, qual seja, a segurança alimentar. A esse respeito, são emblemáticas as diferenças entre as áreas ocupadas pelas principais commodities agrícolas e por cultivos alimentícios tradicionais no Rio Grande do Sul em 2000 e 2017. Comparando, por exemplo, a evolução da área de soja, silvicultura e fumo e a evolução da área de feijão, mandioca e batata percebemse tendências claramente opostas. Fica evidente, ao analisar a tabela 3, que a expansão do agronegócio no Rio Grande do Sul refletiu na ampliação de cultivos não utilizados para alimentação humana e, em paralelo, na diminuição da produção de cultivos alimentícios. Notese, no entanto, que a dimensão das novas áreas de soja e silvicultura é muito superior às áreas subtraídas dos demais cultivos, indicando seu alastramento sobre o bioma Pampa, tradicionalmente ocupado pela pecuária. Dados sobre evolução da área total ocupada por pastagens provavelmente mostrariam a mesma tendência, especialmente considerando a diminuta fronteira agrícola do Rio Grande do Sul quando comparado a outros estados, o que dificulta a abertura de novas áreas por meio do desmatamento com a mesma facilidade de outras regiões. Notese, ainda, a partir da tabela 3, que o arroz foi o cultivo com menor alteração na área plantada entre 2000 e 2017, possivelmente em razão das peculiaridades técnicas relacionadas às áreas de produção em sistema de cultivo por inundação. Ainda assim, percebese que a maior parte dos produtos básicos da alimentação da população do estado teve expressiva redução em suas áreas cultivadas, remetendo ao questionamento sobre o nível de impacto desse processo na garantia da Segurança Alimentar. A Segurança Alimentar é “definida como, quando todas as pessoas, em todos os momentos, têm acesso físico e econômico a alimentos suficientes, seguros e nutritivos para atender às suas necessidades alimentares e preferências alimentares por uma vida ativa e saudável” (FAO 1996). A disponibilidade de alimentos em variedade e quantidade adequadas está relacionada ao uso da terra em função do abastecimento de alimentos para a população urbana e rural. No Rio Grande do Sul, as tendências apontadas acima vêm afetando a produção de itens básicos da alimentação da população, gerando efeitos em termos de disponibilidade de alimentos. A diminuição da área de feijão, mandioca e milho torna o estado cada vez mais suscetível à instabilidade dos preços dos mercados de alimentos. A escassez do milho no estado já provocou diversas crises na produção de carnes, o que impactou diretamente no aumento do preço do produto, assim como em grandes perdas na cadeia. No período mais recente, dois episódios se destacam. Primeiro, a escassez do milho no mercado internacional provocando sérios problemas na agroindústria gaúcha em 20163 , inclusive o fechamento de unidades produtivas4 ; e, em 2018, o episódio da greve dos caminhoneiros5. Assim, parece plausível associar o desenrolar do “ciclo do agronegócio” no Rio Grande do Sul e seus efeitos de redução dos cultivos alimentícios a um provável aumento da insegurança alimentar no estado. Considerações finais A expansão da agricultura de commodities nas últimas duas décadas no Brasil suscita distintas interpretações sobre os efeitos socioeconômicos a ela relacionados. As diferentes perspectivas apresentadas na primeira seção deste trabalho mostram que nos meios jornalístico, político e acadêmico são encontrados discursos distintos, ora associando a expansão do agronegócio a ideias positivas de progresso e desenvolvimento, ora indicando que tal processo está associado ao agravamento da pobreza, desigualdade, entre outras consequências indesejáveis. No sentido de agregar novos dados ao debate, a segunda seção buscou identificar diferenças socioeconômicas entre os municípios com elevada e baixa presença da soja no Rio Grande do Sul. Os resultados encontrados evidenciaram que desde o início dos anos 2000 a produção de soja passou a ocupar uma parcela cada vez maior das economias municipais do Rio Grande do Sul, bem como que os municípios com forte participação da soja em seu PIB tiveram redução demográfica no mesmo período. Tais municípios apresentaram, ainda, Índice de Desenvolvimento Humano menos desejável e concentração de renda superior aos municípios em que a soja se mostrou economicamente pouco relevante. Não foi verificada diferença significativa no PIB per capita dos dois grupos de municípios. Cabe fazer a ressalva, no entanto, de que a estratificação dos municípios realizada na segunda seção do trabalho se baseou em apenas um entre os múltiplos fatores que condicionam as dinâmicas socioeconômicas de determinado município. Por outro lado, a pre- sença expressiva de um único produto (neste caso, a soja) na composição econômica de um município ou região parece vir realmente sendo um forte determinante das dinâmicas sociais locais. A terceira seção, por sua vez, evidenciou a conexão entre o avanço do “ciclo do agronegócio” e a diminuição de diversos cultivos de produtos alimentícios, com efeitos na disponibilidade e na instabilidade dos preços. Sugeriuse, a partir daí que a expansão do agronegócio verificada no Rio Grande do Sul está possivelmente associada a efeitos negativos sobre a Segurança Alimentar. De modo geral, os resultados encontrados corroboram as interpretações que encaram com certo ceticismo a ideia de que a expansão do agronegócio está associada à melhoria de indicadores socioeconômicos locais e regionais. No caso específico do Rio Grande do Sul, tomando a soja como principal commodity agrícola desta expansão, os resultados apontam, inclusive, ao sentido inverso. Conclusões mais precisas a respeito dos impactos da expansão produtiva em questão-bem como de suas relações de causa-efeito com variáveis socioeconômicas – poderão ser obtidas por meio de pesquisas mais aprofundadas, de preferência incluindo métodos que busquem captar aspectos subjetivos e qualitativos que extrapolam a capacidade de análises estatísticas convencionais. ________________________ 1 Não se adentrará na discussão conceitual acerca da noção de desenvolvimento, seus múltiplos significados e interpretações. Para os fins deste trabalho nos limitaremos apenas indicadas as principais diferenças entre os discursos apresentados.ˆ 2 Região que recobre parcialmente os estados do Maranhão, Piauí e Bahia, e totalmente o Tocantins, estados cujas sílabas iniciais formam o referido acrônimo.ˆ Referências ABRASCO (Associação Brasileira de Saúde Coletiva). 2012. Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Parte 1 - Agrotóxicos, Segurança Alimentar e Nutricional e Saúde. 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