Eutopia. Revista de Desarrollo Económico Territorial N.° 19, junio 2021, pp. 11-31
ISSN 13905708/e-ISSN 26028239
DOI: 10.17141/eutopia.19.2021.4988
Terra
e juventude na América Latina: entre lutas, violências e conflitos
Land and youth in Latin
America: between struggles, violence, and conflicts
Tierra y juventudes
en América Latina: entre luchas, violencias
y conflictos
Os jovens aprendem a lutar e a defender-se
por que lhes foi negado um lugar no futuro,
onde tampouco seus pais se encaixam.
Subcomandante
Marcos, 1994
Sérgio Sauer
. Universidade de Brasília. sauer.sergio@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-2014-3215
Luis Felipe Perdigao
de Castro . Universidade de Brasília, Uniceplac e Unidesc. lfperdigao@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-1156-7769
Ralph de Medeiros
Albuquerque. Universidade Federal do Paraná. ralphalbuquerque@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-8773-4642
Recibido: 11/04/2021 - Aceptado: 19/05/2021
Publicado: 30/06/2021
Cómo citar este
artículo: Sauer, Sérgio, Luis
Felipe Perdigao de Castro y Ralph de Medeiros
Albuquerque. 2021. “Terra e juventude na América Latina: entre
lutas, violências e conflitos”. Eutopía.
Revista de Desarrollo Económico Territorial 19. DOI 10.17141/eutopia.19.2021.4988
Resumo:
A partir de cartas, declarações e denúncias
de movimentos e organizações da juventude latino-americana, articulado com
pesquisa bibliográfica, o presente texto analisa o panorama das lutas por
terras na América Latina, debatendo fatores e dinâmicas, como as demandas por
matérias primas, crises e agentes nas oportunidades de negócios. O objetivo é
contextualizar as lutas e resistências latino-americanas, com destaque à
juventude, em especial a colombiana, como caso paradigmático para compreensão
das dinâmicas conflituais envolvendo a juventude rural. Processos de ampliação
do modelo hegemônico, baseado na Revolução Verde, e de exclusão da juventude
rural, são confrontados com reivindicações e compromissos, a exemplo daqueles
emitidos pelos Acampamento Latino-Americano da Juventude (Palmeira das
Missões/Brasil 2014), 5º Acampamento de Jovens de Conamuri
(Caaguazú/Paraguai 2016) e Encontro Geral da
Juventude Tupinambá (Olivença/Brasil 2016), evidenciando, além dos conflitos,
as resistências levadas a cabo pela juventude rural latino-americana.
Palavras-chave: América
Latina; Brasil e Colômbia; juventude rural; lutas por terra.
Abstract:
Based on letters, declarations
and denunciations of Latin American youth movements and organizations, combined with bibliographical
research, this text analyzes the
landscape of struggles for land in Latin America, debating factors and dynamics, such as demands for raw materials, crises and agents in business opportunities.
The objective is to contextualize the Latin American struggles and resistances, highlighting youth, especially Colombian youth, as a paradigmatic case for
understanding the conflict dynamics involving rural
youth. Processes of expansion of the
hegemonic model, based on the Green Revolution, and of exclusion
of rural youth, are confronted with demands and commitments,
such as those issued by the
Latin American Youth Camp
(Palmeira das Missões/Brasil 2014), 5th Camping Young People from Conamuri (Caaguazú/Paraguay 2016) and the General Meeting of Tupinambá
Youth (Olivença/Brasil 2016), showing, in addition to conflicts,
the resistance carried out by rural Latin American youth.
Key-words: Latin America; Brazil and Colombia;
rural youth; land struggles.
Introdução
A questão agrária é uma noção marcada por um debate ou reflexão, tendo
como ponto de partida a expansão do capitalismo industrial e suas consequências
para o campo e a população camponesa ainda no Século XXI. Concebida como um
paradigma essencial e necessariamente atual (Sauer
2013; Montenegro Gómez 2010), mobilizações sociais na América Latina, bem como
abordagens teóricas mais recentes evidenciam um transbordamento da questão
agrária frente aos conflitos gerados pela expansão do capital no campo em suas
distintas formulações (Montenegro Gómez 2010). Analisar, portanto, conflitos
que se expressam na questão agrária e conhecer os sujeitos envolvidos permitem
dimensionar trajetórias de luta e de resistência, capazes de enfrentar a lógica
destrutiva do capital.[i]
Para compreender as conflitualidades no campo não basta analisar as
mutações produzidas, por exemplo, pelo agrohidronegócio,
mas avançar na compreensão dos grupos sociais que resistem e os posicionamentos
que defendem (Montenegro Gómez 2010). É necessário compreender articulações que
as redes de luta promovem, como as filiações étnicas, de gênero e também
geracionais, como outros elementos da “(ex)tensão da
questão agrária” (Montenegro Gómez 2010, 28).
Esta (ex)tensão está presente na erupção de
diversas bandeiras da juventude nos distintos movimentos agrários, muitos deles
vinculados à Coordinadora Latinoamericana
de Organizaciones del Campo
(CLOC), vinculada à Via Campesina. A partir de um contexto mais amplo de lutas
por terra, leituras de declarações ou cartas de diferentes encontros de
movimentos sociais de jovens da América Latina nos últimos anos possibilitam
entender reivindicações, denúncias e lutas da juventude na região.
O presente texto analisa o panorama das lutas por terras na América
Latina, a partir de cartas, declarações e denúncias de movimentos e
organizações da juventude latino-americana, articulado com pesquisa
bibliográfica. Na primeira parte, são debatidos fatores e dinâmicas (como as
demandas por matérias primas, crises e agentes nas oportunidades de negócios) que
contextualizam os processos de ampliação do modelo hegemônico (baseado na
Revolução Verde) e de exclusão da juventude rural. Na sequencia,
essa realidade é confrontada com o papel crítico e transformador da juventude
rural latino-americana, particularmente reivindicações e compromissos emitidos
pelos Acampamento Latino-Americano da Juventude (Palmeira das Missões/Brasil
2014), 5º Acampamento de Jovens de Conamuri (Caaguazú/Paraguai 2016) e Encontro Geral da Juventude
Tupinambá (Olivença/Brasil 2016). Em interface com as reivindicações
apresentadas nessas cartas e declarações, o item 3 reflete sobre o extermínio
da juventude e a negação de direitos sobre terras, territórios e cidadania na
Colômbia. O objetivo é contextualizar as lutas e resistências em meio à
conflitualidade, em especial a colombiana, como caso paradigmático[ii]
para compreender parte importante da juventude rural na América Latina.
1. Fatores de pressão sobre a terra e
recursos naturais na América Latina
Diversos fatores têm influenciado a pressão sobre a terra e os recursos
naturais na América Latina, manifestando-se em forma de crises (de alimentos,
ambiental, financeira e energética), que reforçam e ampliam as lutas na região.
Além disso, fatores geopolíticos com a chamada “guinada ao sul”, representada
especialmente pelos BRICS, influenciam as pressões por terras e outros
recursos, acentuando disputas e conflitos no campo.
Em junho de 2016, a entidade não governamental Genetic Resources Action International, ou simplesmente Grain,
divulgou relatório sobre o fenômeno land grabbing. Após oito anos do lançamento do primeiro
relatório (publicado em outubro de 2008), retomou o que vem sendo traduzido
para o português como “estrangeirização de terras” ou
para o espanhol como acaparamiento de tierras,
reafirmando que a tendência continua crescendo a nível global. No entanto, não
é somente essa demanda mundial por terras que sustenta a tese de que a “questão
agrária”, mais precisamente a terra, é a questão do século XXI.
A terra voltou ao centro da agenda devido a
uma combinação de crises, com especial destaque, a partir de 2008 ou 2009, para
a chamada crise alimentar (Domingues 2011), combinada com outras crises. Essa
combinação, além da crise alimentar, inclui as crises ambiental ou climática,
energética e, particularmente, a financeira (Borras et al. 2012). Essas crises aconteceram no contexto do chamado boom das commodities, ou seja, elevação
dos preços das matérias primas no mercado internacional (The Economist
2011), o que acabou aumentando a produção agrícola nos países ricos (Silva
2011).[iii]
A crise na segurança alimentar – na verdade,
aumento dos preços dos alimentos, reforçada com a notícia de que a população
mundial alcançou sete bilhões em outubro de 2011 – de uma maneira geral,
recebeu soluções e saídas apenas relacionadas à necessidade de aumentar a
produção agrícola. A própria Organização das Nações Unidas para Agricultura e
Alimentação (FAO) fez cálculos e anunciou que a produção agrícola mundial teria
que dobrar para atender à demanda crescente de alimentos devido ao aumento
populacional (Mutela 2014).
A segurança ou soberania alimentar, no
entanto, não pode ser reduzida a uma equação entre produção, quantidade
disponível de alimentos e o número de pessoas, muito menos à quantidade de
calorias diárias necessárias para cada pessoa. A segurança alimentar – seja na
concepção atual do Comitê de Segurança Alimentar das Nações Unidas, seja em uma
perspectiva de soberania alimentar, como defendem os movimentos sociais
agrários – transcende à relação entre extensão de área cultivada e quantidade
ou toneladas produzidas de grãos (Schiavoni 2017).
Na mesma trilha, a crise ambiental vem sendo
traduzida e discutida mais claramente na agenda internacional sob o tema das
mudanças climáticas. Mas, não se resume a essas mudanças (Mcmichael
2009), incluindo relações com atividades produtivas no campo e suas
interferências. Uma terceira crise, diz respeito à crise financeira,[iv]
que teve início em 2008 e 2009 e, entre suas consequências estão a alta
liquidez (redução da taxa básica de juros) e expansão da oferta de dinheiro,
permitindo investimentos, inclusive em terras e recursos naturais (lógica da
mercantilização da natureza) (Borras et
al. 2012). Uma quarta crise, ainda que não colocada em ordem cronológica
ou de importância, é a crise energética, cujos reflexos imediatos foram as
altas dos preços do petróleo, que atingiu seu pico em julho de 2008 (em torno
de US$ 147 o barril) – aliás, um fator fundamental na elevação dos preços dos
alimentos (Portal G1 2008).[v]
Essa crise é composta principalmente pelos desafios em torno da necessidade de
fontes alternativas e menos poluentes do que os combustíveis fósseis.
Articuladas. esse conjunto de crises cunhou a
chamada demanda dos “4Fs”, que se refere à demanda crescente de food (alimentos), fiber (fibras ou ração), fuel
(combustíveis ou energia) e forest (florestas, madeira, celulose e carvão). Além de
incentivar o “capitalismo verde”, os 4Fs explicitam a relação entre crise e oportunidade
de negócios. A elevação dos preços do petróleo, por exemplo, aconteceu, entre
outras razões, pelo aumento das demandas de energia fóssil da China e da Índia
(Portal G1 2008), mas também por processos especulativos.
Os 4Fs não abarcam algumas demandas como, por
exemplo, água e minérios, mas têm relação direta com a agricultura – inclusive
o petróleo, base energética da produção agrícola em grande escala –, portanto,
têm relação com a terra e, consequentemente com a questão ou realidade agrária
(Sauer e Borras 2016). Esta relação, no entanto, não
se resume aos 4Fs, pois há outras demandas, mais especialmente disputas e
conflitos relacionados, por exemplo, à extração (predatória) de minérios,[vi]
que também impactam diretamente sobre a terra e seu uso.
Consequentemente, a realidade agrária – a
terra, portanto – é fundamental em pleno Século XXI. Estão em evidência e em
disputa os temas e suas consequências como, por exemplo, concentração e
desigualdade; quem produz o alimento (nos termos do debate internacional, se a
agricultura familiar – ou a produção em pequena escala – é capaz de produzir o
suficiente para alimentar o mundo); processo de desterritorialização de
populações do campo, devido à demanda por terras ou expansão das fronteiras
agrícolas, entre tantos impactos (contaminação pela mineração, uso excessivo de
agrotóxicos) da crescente demanda por terras[vii] e
expansão do modelo hegemônico de produção agrícola (Sauer
e Borras 2016).
Essa combinação – tanto em termos discursivos
como reais – de crises resultou também na ampliação ou aprofundamento do modelo
hegemônico, baseado na Revolução Verde, de produção agropecuária. Este
aprofundamento está se materializando em dois fenômenos, sendo um o land grabbing ou “estrangeirização de terras” (Sauer
e Borras 2016; GRAIN 2016; Borras et
al. 2012; Zoomers 2010) e o outro formulado
como flex crops ou “cultivos flexíveis”, em analogia
aos motores ou à tecnologia flex (Borras et al. 2016).
O fenômeno de flex crops (cultivos ou colheitas flex) (Borras et
al. 2016, 94), a partir da combinação de crises – e a consequente busca
de segurança alimentar, energética, etc. –, significa que cultivos e
mercadorias “[...] têm múltiplas utilizações (alimento, ração, combustível,
fibra, matéria industrial, etc.) que podem ser intercambiadas de forma
flexível, ou seja, lacunas de abastecimento podem ser preenchidas por outras
culturas flexíveis”. Assim, o conceito abarca cultivos com flexibilidade nas
substituições (intercâmbio de produtos e componentes) e com usos múltiplos dos
produtos, portanto, com importantes avanços tecno-científicos (reais ou
imaginários, como promessas de avanços) que facilitam a utilização de matérias
primas (uso de enzimas, conversão de usinas em biorrefinarias,
etc.) para diferentes propósitos (Borras et al. 2016, grifo nosso).
A flexibilidade e uso múltiplo são combinados
a outros fatores, especialmente a financeirização da agricultura (Borras et al. 2016). O capital financeiro é
atraído por cultivos flex porque estes têm o
potencial de mitigar riscos de investimentos e, ao mesmo tempo, maximizar
retornos (Mckay et al. 2016a, 2016b). É importante considerar que um novo
conjunto de instituições financeiras e atores influenciam na formação de preços
(formação de valor de troca) (Gillon 2016, 119). No
entanto, isto não acontece como resultado da relação entre demanda (gerada por
crises ou faltas) e oferta que motiva novos investimentos, mas pela especulação
(financeirização).
A financeirização (borrando os limites entre
investimentos especulativos e produtivos) representa um descolamento do
processo “clássico” tanto na formação de preços como nos processos de
acumulação (Borras et al. 2016). Segundo esses autores (2016, 102), “mais
recentemente, [a financeirização] tem como alvo os setores alimentar e
agrícola, especulando sobre atividades em toda a cadeia de suprimento
agroalimentar”, gerando uma volatilidade dos preços (fruto das especulações).
Esta é a conexão e a atualização da questão agrária, dando importância à terra,
para além da histórica concentração da estrutura fundiária, reeditando a
importância estratégica dos sujeitos do campo.
Além
desses processos no campo, é necessário considerar mudanças na geopolítica
global, especialmente a criação dos BRICS e, por extensão, a presença da China
e do Brasil na região (Carpintero et al. 2016). Não cabe aqui uma
análise sobre todos os processos e acordos,[viii]
contudo, a aliança entre Brasil, Rússia, Índia e China, a partir de uma
primeira reunião dos chefes desses Estados, em 2009, e a inclusão da África do
Sul, em 2011, vai além de uma mera formalização do acrônimo BRICS, usado por
Goldman Sachs no início do século. As várias reuniões e a criação de acordos de
cooperação deram caráter de “bloco econômico” aos BRICS, apesar das diferenças
– não só de história, cultura, língua, mas especialmente de nível ou poder
econômico – entre os cinco países envolvidos.
A formação dos BRICS foi uma “guinada ao
sul”, materializando não só a cooperação sul-sul, mas inclinando o eixo global
do desenvolvimento do capitalismo (Carpintero et al. 2016; Curado 2015). Essa
guinada e o consequente crescimento da importância do Sul-Global não significa
apenas cooperação, apesar das narrativas brasileiras enfatizando essa
perspectiva na política externa e nos acordos (Mallmann
2015), entre 2003 e 2016. A presença do Brasil na América do Sul, especialmente
através de investimentos e empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), em grande medida, reproduziu as perspectivas
capitalistas de exploração, apesar das narrativas de apoio e cooperação (Sauer, Balestro e Schneider
2017).
Nesse contexto, a China se estabeleceu como
um ator chave na região e, desde 2009, o principal parceiro econômico do Brasil
(Presidência da República 2019). Contudo, nos últimos dois anos, as relações
passaram por momentos críticos (Luca 2021), após a eleição de Jair Messias
Bolsonaro (2018-atual). O governo Bolsonaro fortaleceu o campo político do
agronegócio e ampliou os ataques à terra e territórios, algo que não é apenas
conjuntural. Como parte estrutural do capitalismo brasileiro, ações e medidas
anteriores do governo Michel Temer (2016-2018) já explicitavam a lógica
capitalista de apropriação privada, marcada pela concentração e exclusão, pelo
desmonte de políticas trabalhistas, previdenciárias, ambientais e agrárias,
implementadas nas últimas décadas.
O governo Bolsonaro explicita uma crescente
“política de confronto e guerra cultural” não apenas nas relações
internacionais com a China, como também internamente no âmbito agrário. As
tentativas de legalizar a grilagem em todo o território nacional – ou seja,
afrouxar as regras legais, ampliar a grilagem de terras públicas e a
privatização ilegal de bens comuns (terra, floresta, etc.) – é combinada com tentativas
de criminalização de entidades, movimentos e lideranças e benesses aos grandes
proprietários. As ações e narrativas sustentam a expropriação e, recentemente,
se somam as tensões geopolíticas da pandemia do novo coronavírus (COVID-19).
Eleito com um discurso nacionalista e de
extrema-direita, contrário às pautas ambientais, científicas, culturais e
sociais, o governo Bolsonaro prometeu vetar a venda de terras a estrangeiros,
inclusive chineses. Contudo, são muitas as dificuldades de conciliar a agenda
“conservadora, nacionalista e de costumes” com o “ultra-liberalismo”
do Ministro da Economia, Paulo Guedes. A partir de 2020, a pandemia aprofundou
as contradições e um dos resultados foi a instalação de uma Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI), no Senado, em abril de 2021, cujo objetivo é
investigar ações e omissões no combate à pandemia.
Com apoio da bancada ruralista, evangélica e
de setores militares, o governo Bolsonaro mantém um discurso hostil e
contraditório em relação ao maior parceiro comercial brasileiro. A postura
negacionista do vírus e das vacinas, de defesa pública da prescrição da
cloroquina e de desmantelamento da política nacional de imunizações, segue
promovendo aglomerações e desestimulando o uso de máscaras e de isolamento
social, sob uma falsa dicotomia entre saúde pública e desenvolvimento
econômico.
Alinhando-se ainda mais à bancada
conservadora do agronegócio, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária - Incra (autarquia federal) admitiu,[ix]
perante ação no Supremo Tribunal Federal (STF), a paralisia na reforma agrária.
O ano de 2020 apresentou o menor orçamento para aquisição de terras desde 1995.
Segundo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), cerca de 80 mil
famílias estão à espera de terra. Desde 27 de março de 2019, a presidência do
Incra determinou a paralisação de 413 processos de desapropriação e aquisição
de terras e suspendeu a realização de vistorias em imóveis rurais (STF 2021).
Além do colapso das políticas agrárias e de
saúde pública, nos últimos meses de 2021, tornaram-se ainda mais recorrentes os
ataques à liberdade de Imprensa, às Universidades e Centros de pesquisa e à
autonomia dos Poderes, em especial contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o
Congresso Nacional. Em março, uma crise no Ministério da Defesa levou
comandantes militares a entregarem seus cargos e às vésperas de uma possível 3ª
onda da pandemia, o presidente convocou motociclistas de várias partes do país,
para demonstrar força política em aglomerações públicas (Rodrigues 2021).
Recentemente, sem citar diretamente a China, Bolsonaro insinuou que a pandemia seria um
instrumento de guerra para garantir crescimento econômico. Em 06/05/21,
o porta-voz do governo chinês evitou falar o nome do presidente brasileiro, mas
disse ser contra a “politização” da pandemia (Estadão 2021).
Além da China e Brasil, os BRICS tiveram um
papel crucial, não só na geopolítica global como também nos processos
econômicos regionais, particularmente no setor agropecuário do Cone Sul. Isto
porque o modelo de crescimento econômico dos BRICS está baseado no uso
intensivo dos recursos naturais, especialmente nos processos de exportação de commodities agrícolas (e não agrícolas
como, por exemplo, minérios, petróleo, entre outros) (Carpintero
et al. 2016).
Outros acordos e processos regionais não
podem ser desprezados em análises da recente dinâmica econômica regional. Os
BRICS estão acompanhados do que se chama na literatura internacional dos MICs – middle income
countries, países de renda média ou “países em desenvolvimento” – como, por
exemplo, Argentina, Venezuela, Equador, apenas para citar alguns exemplos
regionais (Curado 2015). A geopolítica atual não é determinada apenas pelos
BRICS e seus acordos e interesses, mas por uma combinação, bastante intrincada
(um mundo multipolar), que a noção de sul-global abarca (Barros 2009).
Para além do Brasil, a presença da China na
região é fundamental, pois é o principal parceiro comercial
da América Latina (Curado 2015), tendo o comércio entre os dois crescido 25
vezes desde 2000. Os investimentos chineses fizeram com que o país asiático se
tornasse o principal destino das exportações da América Latina (Hogenboom 2014). A partir de 2009, a China passou a ser o
principal parceiro comercial do Brasil e da Argentina, e o maior credor de
países como o Equador. Os investimentos e empréstimos chineses – recursos
emprestados em troca de petróleo ou de outras commodities – não resultam em nenhuma condicionante[x]
como, por exemplo, ajustes econômicos, privatizações, ou qualquer outra
exigência além dos termos de troca estabelecidos (Hogenboom
2014).
A postura
chinesa de não interferência (política) não significa que não haja fortes
influências internas nos países, como se viu no caso recente do Brasil durante
a pandemia (insumos e imunização). Elas ocorrem, não através de imposição de
modelos ou exigência de mudanças político-econômicas, mas nos processos de troca,
devido justamente à demanda por produtos primários (Carpintero
et al. 2016), causando, por
exemplo, transformações no uso da terra. Essas demandas e acordos comerciais,
além de incentivar a expansão das fronteiras agrícolas e fortalecimento do
agronegócio exportador em países como o Brasil, são as bases materiais do que a
literatura internacional conceituou como neoextrativismo,
ou seja, a geração de superávits na
balança comercial baseado na exportação de commodities,
gerando recursos para investir em programas sociais (Baletti
2014; Gudynas 2012).
Em termos da geopolítica regional, os
embates, especialmente com os Estados Unidos, não estão relacionados a modelos
de desenvolvimento (ou mesmo a posturas não imperialistas), mas justamente aos
jogos de interesses políticos e disputas comerciais (Mckay
et al. 2016). Essas disputas
pela hegemonia regional são, em vários aspectos, uma novidade que transcende às
fronteiras nacionais e entendimentos mais amplos dos históricos problemas
domésticos, inclusive das disputas políticas no continente (Roberts 2016).
A formalização de acordos comerciais, tanto
regionais (ênfase no Mercosul, ou mesmo nas demais tentativas como a Alba e a Unasul) como globais, independentemente das fragilidades e
dificuldades, envolvendo particularmente governos progressistas representam
ameaças reais à histórica hegemonia estadunidense no Continente. O esgotamento
das narrativas neoliberais e as mudanças políticas nos vários países (Brasil,
Argentina, Bolívia, Equador, Uruguai, Chile, brevemente no Paraguai, entre
outros), e uma reaproximação dos países do Sul (primeiro pela retomada do
Mercosul) afetaram diretamente os interesses históricos dos Estados Unidos[xi]
na região (Roberts 2016; Mckay et al. 2016).
Em termos econômicos, primeiro, é preciso
considerar que há (ou houve) uma mudança nos atores envolvidos, tanto com uma
maior influência da China, como de outros agentes (empresas chinesas, mas
também agentes financeiros). Em termos culturais e políticos, portanto, é
bastante distinto tratar (estabelecer acordos) com os Estados Unidos ou com a
China, mas também com a Rússia ou com a Índia que estão presentes na região. A
não imposição de uma agenda neoliberal, no entanto, não significa acordos e
cooperação sem impactos, inclusive há uma série de discussões sobre processos
de desindustrialização do Brasil devido a acordos com os BRICS (Curado 2015; Bresser-Pereira e
Marconi 2009).
Segundo Bresser-Pereira e Marconi (2009),
entre os diversos indicadores de desindustrialização (ou reprimarização
da economia) estão os dados de exportação. A balança comercial brasileira, por
exemplo, é superavitária desde 2001, mas depende fundamentalmente da exportação
de minérios e produtos agropecuários. As exportações agropecuárias foram
responsáveis por 42%, em média, do total exportado até 2010, caindo um pouco,
para 39,5% em 2012 (Conceição e Conceição, 2014). Do total exportado, 23,2%
foram de soja e 8,8% de farelo, além de percentuais menores de outros derivados
de soja. Houve ainda a venda de açúcar (13,3%), frango (9,6%) e carne bovina
(7,6%), contudo o complexo soja foi o maior item exportado em 2012. Desta lista
restrita de bens exportados, a China é o principal destino, recebendo 18,8% do
total (contra 5,5% em 2002), superando os Estados Unidos que, em 2012, recebeu
apenas 7,3% (sendo que eram mais de 16% em 2002) (Conceição e Conceição, 2014).
Em relação à presença da China[xii],
destaca-se a partir de 2014, uma série de aquisições (compras e fusões) de
grandes empresas chinesas do agronegócio (Puyana e
Constantino 2015). Ainda em 2014, a COFCO (China
National Cereals, Oils and Foodstuffs
Co.), uma das principais empresas chinesas de cereais, óleo e alimentos,
comprou a Noble (empresa do
agronegócio com sede em Singapura e Hong Kong) e Nidera (empresa de sementes e
comercialização, com base na Holanda) (Oliveira 2017; GRAIN 2016). Estas eram
duas grandes empresas com forte atuação na Argentina, mas também com
investimentos no Brasil desde 2004 (inclusive a Noble era proprietária de terminal no Porto de Santos). Com essa
aquisição, a COFCO passou a ser a segunda maior empresa esmagadora de soja
(12,8% do total) na Argentina em 2015, atrás apenas da Cargill (Craviotti 2017). No Brasil, a COFCO foi a terceira maior exportadora
de soja no mesmo ano, ficando atrás apenas da Cargill e Bunge.[xiii]
Segundo o Ministério da Economia, em 2018, o comércio com a China foi de US$
98,6 bilhões, com superávit para o Brasil de US$ 29,2 bilhões. São minérios,
petróleo e produtos agrícolas que o mercado chinês absorve e que, segundo a
Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), impulsionaram o agronegócio
brasileiro.
A presença da China na região ganhou um novo
perfil. As fusões e aquisições mencionadas representam a consolidação da China[xiv]
no setor, inclusive desafiando “o controle do comércio mundial de grãos pelas
quatro grandes” do agronegócio (Wilkinson, Wesz Jr. e
Lopane 2016, 16), ou ABCD – ADM (Archer Daniel
Midlands), Bunge, Cargill e Dreyfus. Essas fusões ou aquisições fazem parte de
processos globais de concentração (e oligopolização) do setor, que não está
restrita a uma maior atuação da China na região.[xv] O
Brasil foi, entre 2003 e 2015, um ator importante nesses processos, com
investimentos do BNDES e financiamentos de infraestrutura em vários países do
Cone Sul. De 2008 a 2014, o BNDES foi o principal financiador, se constituindo
verdadeiramente em um banco regional de desenvolvimento da América Latina, pois
superou os investimentos do Banco Mundial e do Banco Inter Americano de
Desenvolvimento (BID) (Sauer, Balestro
e Schneider 2017), especialmente no contexto dos acordos da Integração da
Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) (Safransky
e Wolford 2011).
Há poucas informações sobre investimentos diretos brasileiros em terras
na região, como, por exemplo, os land grabbing brasileiro no Paraguai e na Bolívia,
acontecidos nos anos 1970 e 1990. Houve até 2014, no entanto, investimentos
(basicamente com recursos públicos do BNDES) em setores como, por exemplo, na
agroindústria, particularmente no setor de processamento de carnes (Mackay 2015). A participação ativa do Brasil ajudou a
expandir o agronegócio regional (reprodução do modelo agropecuário, exportador,
monocultor, concentrador de terras), particularmente na expansão da soja
(Wilkinson, Wesz Jr. e Lopane
2016).
Tanto as crises citadas quanto a mudança geopolítica no continente
intensificam as disputas por terra e recursos naturais que, além dos antigos
atores envolvidos nas disputas (indígenas, camponeses, comunidades
tradicionais, entre outros), ganham outros atores nesse enfrentamento, a
juventude. Jovens esses que, de diferentes maneiras, lutam por direitos,
dizendo “basta” ao modelo agroexportador e à destruição da natureza, entre
outras bandeiras.
2. Juventude no campo latino americano
Um grito ronda os movimentos sociais da Colômbia: “o
governo está nos matando!”. A expressão identifica formas de repressão
desencadeadas pelo governo, contra a mobilização iniciada em 28/04/21, data em
que sindicatos convocaram uma greve nacional (Lerma
2021). A crise chamou a atenção do Escritório de Direitos Humanos da ONU, que
acusou uso excessivo da força por mecanismos como o Esquadrão Móvel Antidistúrbios da Polícia (Esmad).
Na cidade de Cali, a polícia abriu fogo contra manifestantes (Pardo 2021).
Os antecedentes da violência de maio de 2021 remontam à
greve de novembro de 2019. A mobilização nacional foi convocada por centrais de
trabalhadores, organizações sociais, camponesas, indígenas, afrodescendentes e
estudantis, e que também teve como protagonistas as pessoas jovens. A população
se mobilizou contra o “pacote Duque”, que, entre outras medidas, pretendia
baixar o salário mínimo em 75% para jovens menores de 25 anos e diferenciá-lo
de acordo com a produtividade de cada região (Lerma
2021).
Em meio à pandemia e a um ano das eleições, a Colômbia
passa por grandes mobilizações populares (Miranda 2021, Pardo 2021). Segundo
Jorge Restrepo, há indignação somada ao enorme
descontentamento social, pois a pandemia acrescentou um grande sofrimento. Meio
milhão de negócios faliram, a pobreza aumentou em 6,8 pontos chegando a 42,5%
da população (Quesada 2021).
Populações urbanas e rurais de cidades como Cali, no Vale
do Cauca, com 2,2 milhões de habitantes, ficaram bloqueadas por ar e terra,
durante dias. Apesar de não existirem lideranças bem definidas, representações
de quase todos os setores se mobilizaram e chegaram até mesmo a municípios de
pequeno e médio porte. Muitos protestos foram convocados por jovens, com o
apoio de idosos e de populações subalternizadas, como negros e indígenas.
Paralisaram a produção, o abastecimento e o transporte, inicialmente contra o
projeto de reforma tributária do governo Iván Duque (2018-atual), que tratou as
manifestações como “terroristas” (Griffin e Acosta 2021).
A retirada da reforma tributária da pauta e a queda do
ministro da Fazenda, Alberto Carrasquilla, não
aplacou a ira das ruas. Em maio de 2021, membros de sindicatos, estudantes,
pensionistas e trabalhadores foram às ruas da Colômbia para protestar contra o
governo e as manifestações entraram em sua terceira semana (Griffin e Acosta
2021). O Ministério Público e a Defensoria do Povo contabilizaram 42 mortos
desde abril. A ONG Temblores fala em 43 homicídios
(AFP 2021). São cerca de 1,7 mil feridos. Muitas dessas mortes ocorreram em
Cali, Bogotá, Ibagué, Madrid, Medellín, Neiva,
Pereira, Soacha e Yumbo. A
maioria dos mortos e feridos são jovens, inclusive de áreas rurais (Miranda
2021; Jorge 2021).
A juventude rural é uma categoria ordenadora de
representação social. Termos como “jovem da roça, juventude rural, jovem
camponês” referem-se a categorias aglutinadoras de atuação política que, nas
últimas décadas, vêm passando por reconfigurações na América Latina. Ao mesmo
tempo em que dialogam com o mundo, esses jovens reafirmam suas identidades de
“trabalhador, camponês, agricultor familiar” e, ainda, se inserem nas disputas
por terra, trabalho e cidadania (Castro, 2009, 183), particularmente
organizados em redes como a Via Campesina internacional.[xvi]
Embora essa articulação não seja uma novidade, “estamos
testemunhando uma reordenação da categoria”, que envolve lutas sociais sob
diversas formas e contextos. Na América Latina, isso significa o surgimento de um rosto jovem, diverso e mutável
convocando toda a sociedade para
compreender o mundo de outra maneira, para
postular com sua ação um mundo distinto, um mundo onde caibam muitos mundos; e
isto vai ter relação com todos os grandes temas que hoje inquietam os jovens,
por exemplo, a mudança climática, o cuidado com a natureza, de modo que, como
está estabelecido nas Constituições Nacionais do Equador e Bolívia, o
fundamental seja o bem viver mais do que o desenvolvimento selvagem, o bem
viver mais do que o consumo, onde sejam considerados os direitos à água, à
terra, das comunidades e de todos os atores sociais, entre eles, crianças e
jovens, com suas vozes e suas formas de ação (Fraga e Gonzalez 2015, 38).
Seja pela resistência a tais políticas, seja pela violência que delas
decorrem, o debate vem se tornando central e “é evidente o esforço acadêmico,
de ações governamentais e mesmo, do chamado terceiro setor para tratar
juventude” (Castro 2009, 181). Contudo, isso é relativamente recente. Em 1985, a Organização das Nações
Unidas (ONU) declarou, pela primeira vez, o Ano Mundial da Juventude e o tema
adentrou nas políticas públicas, o que só se tornou mais frequente nas agendas de pesquisa após os anos
1990. Na América Latina – a exemplo de Brasil e Colômbia –, os jovens ganharam
visibilidade acadêmica e jurídica há apenas vinte ou trinta anos (Uribe
2001; Fraga e Gonzalez 2015).
A visibilidade da juventude na Colômbia continua marcada pela violência.
Os adolescentes Santiago e Marcelo foram mortos por forças policiais durante os
protestos que tomaram as ruas na semana de 07/05/21. Ambos eram jovens, estavam prestes a
concluir o ensino médio e entrar para a universidade. Os pais dos dois jovens exigem justiça,
não apenas por parte da polícia, mas também das Forças Armadas e do próprio
presidente. Armando Agredo relata que seu filho Marcelo decidiu sair às ruas
para protestar contra a reforma tributária “cansado de tanto abuso”. (AFP
2021). No relatório da
Defensoria Pública sobre as causas das mortes, consta que tanto Marcelo quanto
Santiago perderam a vida por armas de fogo (Miranda 2021).
Por outro lado, a juventude rural ainda é pouco abordada. O foco está na
juventude dos espaços urbanos das grandes metrópoles e a juventude rural é
percebida como uma população específica ou, equivocadamente, como uma minoria
da população jovem. No Brasil, a população de 15 a 29 anos soma 49 milhões (27%
da população total), dos quais 8 milhões são jovens rurais. Fato é que, mesmo
como “minoria”, esse contingente é significativo, sob aspectos quantitativos e
qualitativos (PNAD 2006):
No entanto, o debate deve considerar a
juventude para além de um recorte de população específica, mas, sobretudo, a
partir dos processos de interação social e as configurações em que está imersa.
Neste sentido, juventude é, além de uma categoria que representa identidades
sociais, uma forma de classificação social que pode ter múltiplos significados,
mas que vem se desenhando em diferentes contextos como uma categoria marcada
por relações de hierarquia social (Castro 2009, 182).
No Brasil, o papel reflexivo e transformador da juventude rural tem sido
observado em movimentos como no “MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra),
no Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais e em organizações religiosas
evangélicas e católicas” (Castro 2009, 183), sendo uma dimensão fundamental da
reprodução social no campo. Em outros países, como a Colômbia, a reordenação da
categoria social passa por elementos históricos profundamente particulares,
marcados por conflitos por terras, que envolvem interesses do narcotráfico,
organizações guerrilheiras e paramilitares, além de intervenções
norte-americanas. São dinâmicas “que se entrecruzam, definem olhares e, mesmo,
a atuação do poder público” (Castro 2009, 180).
A capacidade crítica e renovadora da juventude rural é retratada em
inúmeros documentos, sendo que três recentes retratam as reivindicações e lutas
dos jovens na região. A escolha não tem o objetivo de ser exaustiva, mas de
abranger situações comuns ao longo do continente, que identificam tanto as
estratégias de acumulação do capital como as resistências desses jovens.
Reunidos em novembro de 2014, no Rio Grande do Sul,[xvii]
jovens de todos os países do Continente colocaram a ênfase em 10 compromissos
como solidariedade, justiça social e a luta contra o machismo, a homofobia e o
racismo. Entre esses compromissos estão:
Lutar pela reforma agrária, pela produção e o
abastecimento popular de alimentos saudáveis, pela agroecologia, soberania
energética, hídrica, genética e territorial afirmando o campo como espaço de
vida e os povos originários e camponeses como a base do desenvolvimento do
campo. Lutar por uma vida digna, moradia, mobilidade, educação popular, tempo
livre e cultura [...]. Defender a integridade da vida humana e da biosfera,
protegendo-a contra a ganância do capital que mercantiliza, viola e mata (Carta
2014, sem página).
Estes compromissos evidenciam a importância da reforma agrária, tema
clássico da questão agrária, mas também trazem novas dimensões e demandas
ambientais, culturais, territoriais etc. Além disso, a carta enfatiza a
concepção de que a defesa da terra e do território é a defesa da vida
(Montenegro Gómez 2010).
Jovens de todo o continente levantam a bandeira da reforma agrária e da
produção saudável de alimentos ao mesmo tempo em que grandes veículos de
comunicação anunciam o fim da reforma agrária. Manchetes afirmam “a cada vez
mais desnecessária reforma agrária”, exaltando que “o ‘latifúndio improdutivo’
foi extinto pelo avanço do capitalismo no campo, na expansão da fronteira
agrícola até as franjas da Amazônia” (O Globo 2013). Jovens continuam
levantando uma bandeira enquanto intelectuais afirmam que a reforma agrária,
“nos termos propostos e até hoje vigentes, se tornou desnecessária, anacrônica
e até incoerente – para usar termo polido – do ponto de vista do País” (Buainain 2013). Serão esses jovens anacrônicos? Serão esses
jovens, num jargão comum, “rebeldes sem causas”?
Pelo contrário, esses jovens estão atentos aos problemas do seu tempo e
além dele. Lutam por soberania nas suas distintas interfaces e a soberania
alimentar é uma destas bandeiras. Como afirma Rosset (2006, 311), ela “envolve
a implementação de processos radicais de reforma agrária massiva, adaptada
primordialmente às condições de cada país e região e que propicie ao camponês
[...] acesso equitativo a recursos produtivos, primordialmente a terra, água e
florestas”.
A despeito de decretos taxativos (esses sim, não são nenhuma novidade),
o tema da reforma agrária persiste na pauta política nacional e internacional e
é reforçado pela demanda crescente de alimentos, pelas mudanças climáticas
dentre outros (Sauer 2013). Além das crises citadas e
aspectos geopolíticos na região, bandeiras da juventude em toda América Latina
se renovam e ganham novas dimensões com lutas por terra e território
(Montenegro Gómez 2010; Sauer 2013), mas também por
lazer, cultura e educação, que contemplem esse público no campo e na cidade.
Com abrangência geográfica menor que a iniciativa anterior, mas
igualmente significativa, o 5º Acampamento reuniu jovens dos diferentes
departamentos do Paraguai, sob o lema “juventude que se anima a lutar constrói poder
popular”.[xviii]
A declaração final se solidariza com as populações de territórios invadidos
pela militarização, os afetados pelas mudanças climáticas e com os homens e
mulheres que, por condições de desigualdade, são forçados a migrar. Destaca-se
novamente a forte influência da questão ambiental, especificamente com relação
às mudanças climáticas.
Nessa declaração, os jovens manifestam como compromisso buscar o
protagonismo “no fortalecimento da luta por educação pública gratuita e de
qualidade” (Declaração 2016). As lutas desses jovens envolvem demandas por
educação, reforçando que “uma contribuição para pensar políticas públicas para
‘esta’ juventude seria observar as demandas da própria juventude rural
organizada” (Castro 2009, 201). Tal compromisso reforça ainda a “necessidade de
lutar pela manutenção das políticas públicas conquistadas”, enfrentando “às
necessárias lutas a serem empreendidas para não permitirmos retrocessos nas
políticas públicas” (Molina 2015, 395).
Na mesma declaração, os jovens se comprometem com “a promoção da
soberania alimentar dos povos e no avanço da produção agroecológica como uma
prioridade igual da reforma agrária” (Declaração 2016). O compromisso de
promover a soberania alimentar se alinha com aspectos clássicos da questão
agrária, as formas e a escala de produção e o abastecimento de alimentos,
contudo incidindo em questões qualitativas e não só quantitativas. O debate
remete à reflexão sobre a mercantilização da produção e a comercialização
exagerada de produtos agrícolas transportados desde lugares remotos (Montenegro
Gómez 2010).
A soberania alimentar se firma como um paradigma vinculado aos aspectos
ambientais, destacando a importância de construir uma agricultura ancorada no
local e que limite os insumos necessários para produzir e comercializar a
produção, em função do contexto de cada população (Montenegro Gómez 2010). Sauer e França (2012, 317) afirmam que “a preservação de
nascentes, córregos e rios é parte fundamental das estratégias de soberania e
segurança alimentar, não apenas pela necessidade de produção de alimentos, mas
também como um componente essencial e indispensável à vida”.
A Agroecologia aprofunda um debate necessário que se propõe tanto contra
o capital intensivo em tecnologias destrutivas como contra inserções produtivas
da agricultura de pequeno porte, voltada apenas à quantidade de produto e sua
venda no mercado (Montenegro Gómez 2010). Para Balestro
e Sauer (2009, 8), a Agroecologia é “a possibilidade
de liberdade frente às determinações postas como quase naturais de um modelo econômico que artificializa a vida e
incentiva o desperdício de recursos finitos do planeta”. Uma transição
agroecológica “implica a passagem de um processo de reprodução social
completamente insustentável no longo prazo para um outro que não carregue o
fardo das tendências destrutivas do nosso tempo” (Balestro
e Sauer 2009, 8). Assim
como a soberania alimentar e a Agroecologia, esses jovens defendem o resgate
das sementes nativas e crioulas, compreendidas como fundamentais para sua soberania,
sendo que as pesquisas nesse campo encontram-se majoritariamente nas mãos de
grandes grupos empresariais (Sauer 2010), expressando
o compromisso com “[...] a preservação e resgate das sementes nativas e
crioulas e nos cuidados com a Mãe Terra” (Declaração 2016). Ao manifestar os
cuidados com a Mãe Terra, evidenciam a concepção que esses sujeitos têm da
terra como elemento indissociável da vida em todos seus aspectos, não só
econômico-produtivos. Consequentemente, a utilização de técnicas e insumos que
deturpam essa relação é considerada absolutamente improcedente.
Esses jovens assumem um discurso em defesa da vida ao levantar bandeiras
de lutas como a soberania alimentar, a agroecologia e a defesa da Mãe Terra.
Propõem projetos de vida, diferentes da lógica capitalista marcadamente exógena
(Montenegro Gómez 2010).
Na mesma toada, jovens Tupinambás, reunidos em dezembro de 2016,
escreveram a Carta Aberta do Encontro Geral da Juventude Tupinambá,[xix]
apresentando suas lutas, reivindicações e demandas.[xx] Os
temas abordados no encontro foram demarcação, autodemarcação, terras
tradicionalmente ocupadas, reservas propostas pelo governo, situação
quantitativa das reservas, de terras demarcadas e em processos de demarcação
(Carta Aberta 2016). As lutas por terra, território, reconhecimento (Sauer 2010b) são evidentes na vida dos jovens Tupinambás,
assim como seus povos lutam para garantir direitos. Além das demandas por
reconhecimento de territórios, os jovens Tupinambás apresentam críticas ao
modelo de desenvolvimento defendendo que:
A força da retórica de que nós Tupinambá
teríamos sido “extintos” cria diversas dificuldades para nossas lutas na
construção de novas formas de vida e cultura num país onde as alternativas ao
modelo de desenvolvimento atual – que destrói ambientes e aprofunda opressões –
muitas vezes parecem escassas (Carta Aberta 2016, sem página).
Esses jovens resistem à condenação do “desenvolvimento realmente
existente” (Latouche 2009) e, como afirma Montenegro
Gómez (2010, 22), “movimentos sociais urbanos e rurais, indígenas e de defesa
dos direitos humanos compartilham da ideia de que os projetos
desenvolvimentistas exercem uma estrita dominação sobre o território em seu
conjunto”. Além das críticas ao modelo imposto, esses jovens enunciam algumas
de suas formas de resistência:
[...] a defesa de nossas práticas
tradicionais, bem como, produção das novas etnopolíticas
que fizeram e fazem parte da contínua e difícil escolha de criar outros mundos
– outras humanidades e ecologias – para além e contra aqueles da (neo)colonização e da exploração da natureza e dos homens a
partir da acumulação privativista (Carta Aberta 2016,
sem página).
A afirmação das territorialidades e identidades territoriais estão entre
os elementos de “r-existência” das populações “tradicionais” (Cruz 2006),
especialmente dos jovens, cruciais nos processos de reprodução social dos povos
do campo. R-existência, pois lutam e resistem
contra os que exploram, dominam e estigmatizam essas populações, mas também
afirmam maneiras de existir e ser. Resistências e lutas por
determinados modos de vida e de produção, mas também diferenciados modos de
ser, sentir, agir e pensar (Porto-Gonçalves 2001).
No Brasil, assim como na América Latina, grupos sociais acionam a
identidade “juventude rural” para identificar questões e bandeiras gerais dos
movimentos sociais do campo, mas também lutas e reivindicações específicas. É
uma categoria social, mobilizadora de atuação política (Castro 2009).
Entretanto, esta categoria convive com percepções contraditórias uma vez que,
por um lado, a juventude é normalmente definida como vanguarda, transformadora,
questionadora, por outro, como em formação, inexperiente, sensível (Castro
2009). Esses jovens, enquanto sujeitos, apresentam tanto demandas comuns aos
seus movimentos ou comunidades de origem, como atualizam e reinvindicam
direitos específicos.
A juventude da América Latina lança luz ao debate sobre resistências e
temas comuns e clássicos, que contemplam múltiplas dimensões da questão
agrária, dos conflitos por terra e território, das lógicas de produção
capitalista e suas diferentes frentes de desenvolvimento e exclusão social.
Traz também outras demandas, como as lutas por educação e lazer, que levem em
consideração nos percursos formativos escolares e não escolares, direitos,
culturas e identidades dos sujeitos do campo. Esses jovens encampam a luta das
mulheres pelo seu reconhecimento, seu papel na geração de renda e vida, na
produção de alimentos e pela melhoria das condições de vida no campo. Evidenciam
o bem viver como princípio dos povos originários; a alimentação saudável, por
meio de saberes e práticas da agroecologia e da agricultura orgânica, da
economia solidária em contraposição à perspectiva corporativa da alimentação,
entre outros aspectos.
3. Juventude e luta pela terra na
Colômbia: violência e pacificação
A juventude rural vivencia as lutas sociais por terra, direito e paz que
se manifestam por diversas frentes, como se vê nas manifestações populares e de
massa, na Colômbia. Em maio de 2021, “o país está em chamas”, nas palavras de María Emma Wills, professora da
Universidade de Los Andes. A reação do Estado tem sido o “chumbo” para quem
protesta (Quesada 2021).
Os antecedentes mais imediatos da violência estatal de 2021 remetem à
greve de novembro de 2019. Convocada por Centrais de trabalhadores, organizações
sociais, camponesas, indígenas, afrodescendentes e estudantis, também teve como
protagonistas as pessoas jovens. A população se mobilizou contra o que chamou
de “pacote Duque”, que, entre outras medidas, pretendia baixar o salário mínimo
em 75% para jovens menores de 25 anos e diferenciá-lo de acordo com a
produtividade (Lerma 2021).
A Colômbia é um caso paradigmático de estreita relação entre a juventude
rural e as lutas sociais por terra, direito e paz, em meio a um verdadeiro “juvenicídio”, promovido pela resposta violenta do Estado.
Além de uma população jovem, a Colômbia tinha, em 2010, uma população de 45 508
205 habitantes, dos quais 49,4% eram homens e 50,6% mulheres (DANE 2010). Em
2018, a população era estimada em 48 258 494 pessoas, das quais 51,2% mulheres
e 48,8% homens. Cerca de 22,6% da população possuía até 14 anos de idade; 68,2%
da população possuía entre 15 e 65 anos de idade e 9,1% mais de 65 anos de
idade. A maior parcela da população jovem, de 15 a 29 anos, está concentrada em
departamentos com índices significativos de pobreza,[xxi]
tais como Amazonas, Putumayo, Guainía, Vichada, Guaviare e Arauca (DANE 2019, 2020):
Fonte: Censo
Nacional (DANE 2019, 1).
Apesar da predominância da população urbana, a população rural tende a
protagonizar o cenário político, econômico e cultural, em especial porque,
historicamente, os conflitos armados envolvem os temas e espaços rurais
colombianos (Castro 2019). A relevância da população jovem também se traduz em
números de violência e pobreza.
Dos mais de sete milhões de afetados pelo conflito na Colômbia, pelo menos dois milhões são jovens e
representam 28% do total de vítimas. Segundo o Censo, 72,6% dos jovens entre 17 e 24 anos que vivem nas zonas rurais não
têm acesso à educação e 11,5% da população camponesa com mais de 15 anos não
sabe ler e escrever (DANE 2010; Palomino 2016). Parte desses jovens estão em
departamentos colombianos com altos percentuais de pobreza multidimensional.
Isto é, possuem baixo acesso às condições de educação, saúde, trabalho,
serviços públicos, infância e juventude saudáveis e habitação. A pobreza nos
municípios mais populosos do país foi de 13,8%. Nas áreas rurais o percentual é
de 39,9% (DANE 2019, 2020).
Embora a violência e a privação de
direitos, em desfavor dos mais jovens, possuem raízes antigas e remontam ao
passado colonial, nas últimas seis décadas, as disputas assumiram feições
peculiares, dentro de um intenso conflito armado interno (CAI).[xxii] Desde
as décadas de 1940 e 1950, partidos políticos tradicionais radicalizaram suas
disputas, acirrando os problemas rurais e desencadeando
uma onda de violência sem precedentes (Castro 2019). Os camponeses organizados
pelo Partido Comunista Colombiano (PCC) estruturaram os primeiros focos de
resistência armada (Ceará 2009). Posteriormente, a Colômbia passou pelo agravamento de confrontos entre
o Estado e diferentes organizações/movimentos sociais. A partir dos anos 1960,
conformaram-se formas de violência do Estado nas zonas de colonização
armada ou regiões de autodefesas[xxiii]
(Leongómez 2006, 64). Na sequência, houve a expansão do narcotráfico (anos
1970) e a consolidação de organizações paramilitares (anos 1980) (Franco et al
2006).
Ao longo do século XX e no alvorecer do século XXI, existiram grupos
armados reconhecidos como guerrilhas.[xxiv]
Tais grupos atuaram em negociações formais e/ou ações violentas, sob comandos
organizados e reconhecidos entre seus integrantes, controlando certas regiões
do país. Da mesma forma, os grupos armados paraestatais, reconhecidos como
paramilitares, organizaram-se com o aval do Exército Nacional Colombiano e
criaram, a exemplo das Autodefesas Unidas de Colômbia (AUC), forças de defesa
do empresariado agrícola, pecuarista, agroindustrial e de narcotraficantes (Arnson 2004, Castro 2019).
Os anos 1990 foram marcados pelo combate ao tráfico de drogas. Os
Estados Unidos da América (EUA), com base na diplomacia retaliativa e na
mobilização militar, apoiaram diversas iniciativas (Díaz 2002; Grisales 2013). Os Planos Colômbia e Patriota
intensificaram a militarização e a polarização da Colômbia ante seus vizinhos
latino-americanos. Contudo, esses investimentos não impediram o aumento da
violência contra a população camponesa e povos indígenas.[xxv]
Permaneceram problemas históricos, como a falta de atividades alternativas e
terras para o campesinato (que vivia em extrema pobreza, trabalhando nos
cultivos de coca e papoula para garantir sua sobrevivência). A falta de
perspectivas educacionais e laborais entre os jovens também foi um fator de
opção pelas forças armadas, grupos paramilitares e movimentos de esquerda (Cavallaro e Mendonça 2002; Díaz 2002; Gallego 2008).
Panoramicamente, o quadro interno consolidou o histórico conflito
político e de extrema pobreza na Colômbia (Ceará 2009, 205). Houve assim um
“contexto político excludente de democracia restringida, que centraliza o
exercício do poder político nas mãos dos partidos tradicionais e no
desenvolvimento de um regime de governo que levanta uma estratégia de luta
contra os movimentos sociais e os partidos de oposição” (Gallego 2008, 83).
Tal realidade emergiu atualizada em 2021, sob a violência estatal. O
país ficou semanas paralisado e protestos se estenderam ao longo de todo o
território. A hostilidade política da população, contra o presidente Iván
Duque, explica que as pessoas tenham ido inicialmente às ruas em 28 de abril
para protestar contra a reforma tributária (que pretendia levar adiante no
Congresso, após a pandemia de COVID-19). Após cinco dias de clamor nas ruas e
quando começavam a surgir os primeiros casos de repressão policial, o
presidente retirou a reforma e demitiu o ministro da Economia. O protesto,
entretanto, ficou maior. Regiões e cidades inteiras foram bloqueadas. Os
manifestantes levantaram postos de vigilância e barricadas. A polícia tentou
dispersar as multidões com violência (Quesada 2021).
Nesse quadro, a juventude é protagonista de lutas sociais e vítima da
violência institucionalizada. No caso colombiano, é comum referir-se ao “juvenicídio” como a prática massiva e
reiterada de atentar contra a vida de jovens. São pessoas expostas a “atentados
contra suas possibilidades de emprego, na dimensão econômica; atentados contra
a participação, na dimensão política; atentados contra uma adequada
representação midiática, através das formas simbólicas; e, é claro, atentados
contra a vida propriamente dita” (Fraga e Gonzalez 2015, 33).
Particularmente a juventude rural colombiana tem sido privada de direitos, não
somente em razão de históricos conflitos armados, mas sobretudo por crimes de
Estado, que envolvem o pano de fundo das lutas por terra.[xxvi]
Historicamente, os conflitos ligados a lutas pela terra foram se
mesclando com outras causas, como o narcotráfico e a paramilitarização.
Contudo, é importante
desmitificar a ideia simplista de que a juventude rural colombiana está
envolvida com a produção de coca e outras substâncias psicoativas em geral e,
apenas por isso, é vítima de violência estatal. Há questões importantes a serem
agregadas nessa análise, que envolvem a identidade sociocultural, moradia e as
relações de trabalho no meio rural colombiano.
As pessoas que moram nos
territórios onde existem os cultivos – os chamados “raspachines” (coletores das
folhas) – desenvolvem a atividade para sobreviver, como mão-de-obra contratada
por donos de cultivos, por grandes narcotraficantes e pelas guerrilhas. Muitas
regiões da Colômbia onde há cultivos ilícitos coexistem com territórios de
cultivos diversos, como de gêneros alimentícios das comunidades indígenas,
camponesas, de agricultores familiares e demais povos tradicionais. Ou seja, a desigualdade
social e a disparidade de renda agravaram e expandiram cultivos ilícitos, sendo
que camponeses, indígenas e
a própria juventude rural “estão envolvidos porque moram lá e fazem a colheita
nas plantações” (Fraga e Gonzalez 2015, 36), mas suas atividades vão além e se manifestam por
produções de alimentos e outros bens materiais e culturais de valor social.
Assim, muito além do narcotráfico, os conflitos afetam transversalmente a vida nacional e colocam a
juventude rural em evidência, pois:
A luta pela terra é um fator determinante no
devir da guerra irregular na Colômbia. O controle de territórios de cultivos
ilícitos, áreas de produção e de distribuição de drogas, regiões de produção
agrícola, mineral ou de gado são alvos dos grupos armados e, portanto,
epicentros tanto de combates como de hostilidades (GIL 2009, 89).
É preciso então considerar que a juventude
rural não é um conjunto homogêneo com categorias fixas. Assim, se insere em uma
diversidade que inclui “jovens em meio à guerra; na guerra; em condições
marginais; em bairros populares e em contextos rurais e urbanos”. Apesar das
variadas narrativas e interpretações da juventude sobre a terra, os conflitos e
a paz, “não se perfila em suas narrativas o ideário de uma razão moderna, de
consenso e encontro de mínimos para a convivência”. Ao contrário, os distintos
grupos da juventude, incluindo jovens rurais, evidenciam “um deslocamento de
seus referenciais de confiança frente às instituições como fontes de sentido
duradouro”, se estabelecendo a “desconfiança e descrédito para os sistemas
institucionais tradicionais” (Gomez 2008, 24).
A descrença na capacidade das instituições em
combater a pobreza, a precariedade e as injustiças levam a questionamentos
sobre o lugar do próprio Estado e suas responsabilidades no conflito armado. Na
prática, esse descrédito decorre das violências reiteradas que os jovens
colombianos têm experimentado, pois a história da violência armada contra eles é também a do silenciamento.[xxvii] A
juventude rural, no entanto, reivindica terras como territórios de vida,
educação, saúde e dignidade, ao mesmo tempo em que “têm sido testemunha de
fatos atrozes, como o assassinato e tortura de seus pais, mães, familiares e
vizinhos, incêndio e destruição de seus lares, animais e objetos pessoais”
(Fraga e Gonzalez 2015, 31 e 36).
A violência proporciona formas diferenciadas
de ser jovem no mundo rural colombiano, ora como protagonista social, ora como
vítima do conflito. Para aqueles que estão diretamente em meio à guerra, nos
contextos marginais ou como estudantes universitários em situações periféricas
“a morte aparece como a marca em duelos inexoráveis”. Para outros, “a morte se
constitui como critério de justiça” (jovens em contextos marginais e jovens
rurais) ou, ainda, “como formas de controle e auto-justiçamento”
(jovens em conflitos armados) (Gomez 2008, 24). Essa situação resulta que:
[...] noções de
paz, liberdade e justiça constituem enteléquias, [...] destacam uma relação
bipolar, um ethos
cultural sagrado do bem e do mal, em que o outro é o bárbaro. ‘A existência
daqueles grupos’ faz com que tenhamos que combater na guerra” (Gomez 2008, 8).
Na Colômbia, de forma geral, as relações
político-culturais “seguem girando em torno de um centro mítico, imaginário,
totalizante e messiânico, que se expressa na falta de uma concepção
dessacralizada e totalmente laica/secular da política” (Uribe 2001, 174). Mesmo
os jovens inseridos na universidade mesclam em suas narrativas um respeito
quase religioso à diversidade, à vida e às subjetividades. Para esses, embora
as lutas sociais sejam engendradas no campo e na cidade, a solução parece ser
mais crível pela fé que pela confiança na atuação do Estado.
Isso não significa apenas um aspecto de
religiosidade ou sacralidade, mas demonstra também como em contextos de
marginalização, os jovens convivem entre a fé e a ação coletiva, ambas
transformadoras de significados (da guerra em paz, do não lugar em terras e
territórios, da morte em vida digna). Consequentemente, alguns setores, como a
juventude rural, “não reconhecem a autoridade do Estado e sua função reguladora
na sociedade, consequência das condições de marginalidade em que muitos deles
vivem”. A violência se deve, portanto, à ausência do Estado como mediador da
riqueza e fiador dos direitos humanos dos jovens (Grisales
2013, 128). Essa concepção, contudo, não relega as narrativas a uma visão
pessimista da vida e do futuro, mas produz utopias e esperanças sobre a
mudança, pois “alguns jovens rurais escolarizados, jovens marginalizados e em
bairros populares narraram histórias com finais felizes, nos quais simbolizam a
riqueza como meio de solução das iniquidades sociais [...]” (Gomez 2008, 8).
As narrativas e as ressignificações ocorrem
pelas reivindicações, em que a população jovem manifesta que os acordos com o
Estado e com as instituições de poder já não são mais suficientes, reconhecendo
que um novo ciclo histórico deve ser vivido (Dotta
2016). Por outro lado, essas narrativas passam por representações dramáticas,
cênicas e simbólicas. Em 2004, a “Red Juvenil”
organizou a 1ª Jornada pela Paz, Memória e Não-Violência denunciando mortes,
desaparições e deslocamentos de habitantes da Comuna 13, em razão da Operação Orión. Tais iniciativas demonstram que as lutas da
juventude rural se coadunam com a reconstrução social e a busca por memória e
verdade nos conflitos colombianos (Suarez et al. 2014, 392/394).
Seja através da fé e/ou da autodeterminação
das pessoas e comunidades, os jovens rurais se organizam através de coletivos
de base, em grupos locais, regionais e nacionais, em movimentos nos quais
participam camponeses, estudantes, trabalhadores de bairro, de fábrica e
secundaristas (Dotta 2016). Eles reivindicam co-determinação entre a vontade pessoal e as oportunidades
sociais. O conflito evidencia lutas sociais por terra e direitos como condições
mínimas de desenvolvimento das próprias capacidades ou, do contrário, “a
justiça se relega à esperança mágica de uma salvação alcançada por sorte, por
ajuda de um rico ou pelo destino divino” (Gomez 2008, 9 e 10).
Não obstante às diversas percepções e
soluções para o conflito, a situação de instabilidade tem levado a resultados
impactantes, a exemplo do “desplazamiento forzado”, que configura crimes contra a humanidade.[xxviii]
No caso de jovens rurais, a situação é mais grave, pois, na condição de
camponeses e indígenas, chegam às cidades e não encontram meios básicos de
sobrevivência. Faltam políticas públicas estruturadas ou eficientes para
atender a população, em especial a faixa mais jovem. Nas periferias onde vão
morar, “seguem recebendo o fustigamento de forças
armadas de diferentes tipos, que consideram que como fugiram, faziam parte de
algum grupo armado; assim, os deslocados continuam marcados e segregados”
(Fraga e Gonzalez 2015, 32), repetindo a lógica excludente mais geral[xxix]
da América Latina.
Por outro lado, os filhos de deslocados, isto
é, uma parcela de jovens, sofre igualmente a discriminação nos outros meios
sociais, como escolas e hospitais. Não há políticas para garantir aos jovens
camponeses o retorno às terras de suas famílias e, quando retornam a seus
territórios, muitos são novamente vitimizados por quem se apoderou ilicitamente
das áreas rurais (Fraga e Gonzalez 2015, 32).
Os impactos diretos do deslocamento em
crianças e adolescentes são o desenraizamento, degradação da qualidade de vida,
amontoamento, fome, enclausuramento nos lugares onde se estabelecem de forma
precária, porque a vida nas cidades os confronta com muitas humilhações,
exclusões, discriminações raciais, étnicas, de classe etc. Enfrentam
humilhações por sua origem étnica, cor da pele, costumes camponeses, modos de
falar, tudo o que implica degradação em situações que são geralmente de extrema
pobreza (Fraga e Gonzalez 2015, 32).
Assim, a violência contra a juventude rural tem um caráter difuso, pois
não é um modelo de vitimização vertical, único e bem definido. Também não se
trata de modelos horizontais ou de barbárie simétrica em que vítimas e vitimários estão situados em lados claramente identificados
(Grisales 2013). Essa complexidade faz crer que, na
Colômbia, “o passado não passa, a guerra não termina e, por isso, o apelo à
memória é ambíguo e problemático, pois o contexto de guerra permanente leva a
uma impossibilidade da memória, de esquecimento e da história” (Pécaut 2004, 91).
Contudo, a primeira década do século XXI trouxe mudanças qualitativas e
quantitativas nas possibilidades de paz (Castro, 2019). A juventude rural vem
se delineando como a população composta “pelos filhos dos conflitos no país” (Dotta 2016), pois:
Em todas as famílias colombianas ou há um
militar, ou um policial, ou um guerrilheiro, ou há uma liderança popular. A
juventude que nasceu nas décadas de 1990 e 2000 sofre as pressões e resultados
de mais de 50 anos de conflito. Um dos efeitos é a violência econômica, pois
faltam oportunidades de trabalho. É uma juventude que tem vinculação direta com
a guerra, sobretudo as camadas mais baixas. Segundo as estatísticas do Estado,
são as classes populares que têm sido o corpo da guerra durante esses últimos
anos (Dotta 2016, sem página).
Não obstante as Farc não sejam o único grupo armado com poder de ação na
Colômbia, o governo de Juan Manuel Santos iniciou, em 2012, diálogos de paz com
a guerrilha, em Havana, Cuba. A agenda incluiu temas de política de
desenvolvimento agrário, de participação política, a previsão do fim do
conflito e uma solução ao problema das drogas ilícitas, além de direitos das
vítimas à verdade e ao ressarcimento (Grisales 2013).
Após quatro anos de negociações, Juan Manuel Santos e as Farc assinaram
um acordo de paz, em
26/09/2016. Ao ser anunciada a assinatura do acordo, centenas de jovens
passaram a debater o que foi negociado em Havana, formando
coletivos que organizaram shows, realizaram marchas, mas principalmente
tentaram abrir espaços para o debate em universidades (Palomino 2016; Salek
2016).
Em 2 de outubro de 2016, os colombianos
foram às urnas[xxx]
decidir se aprovavam o acordo de paz com as Farc. Por uma diferença de 54 mil
votos, o “não” se impôs ao “sim” (50,2% a 49,8%) e a proposta foi rejeitada.
Nas primeiras horas após o resultado, o governo e os líderes das Farc afirmaram
que manteriam o diálogo e buscariam uma solução conjunta (Salek 2016).
Em 12/11/2016, o governo da Colômbia e as FARC assinaram um novo acordo
de paz, em Havana, ao qual incorporaram demandas da oposição, sem previsão de
plebiscito. O acordo de paz, porém, sofreu uma nova reviravolta política, nas
eleições presidenciais de 2018. Em 17/06/18, com um índice de abstenção de quase
47%, foi eleito presidente da República, Ivan Duque (2018-atual), com vantagem
de 12 pontos sobre Gustavo Petro, candidato de esquerda, ex-prefeito de Bogotá
e ex-guerrilheiro, apoiado por grande parte do arco
progressista colombiano – e especialmente por mulheres e jovens, que foram a
espinha dorsal do ativismo pela paz. Duque se elegeu com apoio do ex-presidente
Álvaro Uribe, um dos principais opositores ao acordo de paz. A eleição de Ivan
Duque (2018) mantém a tensão entre terra e violência, no cenário institucional
e na memória colombiana (Castro 2019, 85).
A paz segue irresoluta em 2021. A juventude rural colombiana tem
considerado o desafio de compreender e solucionar um conflito que possui
dimensões nacionais e locais. Por outro lado, parece não perder de vista que os
fenômenos subjacentes são parte de um contexto comum à América Latina, qual
seja, o extermínio da juventude e a negação de seus direitos sobre terras,
territórios e cidadania.
Notas a título de conclusão
A “guinada ao sul”, como estratégia geopolítica com os BRICS como
exemplo mais representativo, não representa projeto alternativo à lógica
destrutiva do neoliberalismo. Esse projeto serve como ilusão reformista nos
blocos de poder da periferia do sistema à crise de hegemonia dos países
centrais abatidos pelas contradições da globalização. Além disso, a formação
dos BRICS aponta na geopolítica internacional das primeiras décadas do século
XXI, um novo bloco de poder capaz de reorganizar a dinâmica de acumulação do
capital nas condições da crise estrutural.
Também as diferentes crises: de alimentos, ambiental, financeira e
energética irão impor à América Latina um aprofundamento das lutas e conflitos
por terra e território na região. Além dos “velhos” sujeitos que se opõem ao
aprofundamento da exploração, da desigualdade e injustiças, também os “novos”,
os jovens, se apresentam no continente como sujeitos que reafirmam as lutas e
dizem “basta”. Assim, reforçam as resistências, r-existência e o território
(onde a questão da terra tem lugar central), que ganham importância não só pelo
lugar que a ordem moderno-colonial nos destinou na divisão internacional do
trabalho, como também pelo significado da natureza para a reprodução de
qualquer sociedade (Porto-Gonçalves 2008).
Os sujeitos envolvidos nos conflitos da questão agrária na América
Latina permitem dimensionar trajetórias de luta e a construção de resistências,
capazes de enfrentar a lógica destrutiva do capital. Nesse sentido, a juventude
rural é uma categoria social aglutinadora de ações políticas e identidade
cultural, que vem reordenando a si mesma e protagonizando as novas dimensões e
significados da luta por terra e território.
Nesse contexto, os jovens assumem um discurso, propondo projetos de vida
diferentes da lógica capitalista marcadamente exógena. A juventude da América
Latina traz luz ao debate das resistências de temas comuns e clássicos da
questão agrária, contemplando as múltiplas dimensões dos conflitos por terra e
território, das lógicas de produção capitalista e suas diferentes frentes de
desenvolvimento e exclusão social. Mas, também, diz respeito a outros
elementos, como a educação do campo e as lutas por educação, levando em
consideração percursos formativos (escolares e não escolares), os direitos, as
culturas e as identidades dos sujeitos do campo.
Assim, esses jovens encampam a luta das mulheres, o bem viver como
princípio dos povos originários; a alimentação saudável (por meio de saberes e
práticas da agroecologia, da agricultura orgânica, da economia solidária) em
contraposição à perspectiva corporativa da alimentação e dos recursos naturais.
Por fim, o caso colombiano é emblemático (ou paradigmático), à medida
que nele a violência representa a negação da política, isto é, a expressão
concreta e real da ausência de diálogo e ação, componentes definidores da
política. Em meio a críticas e conflitualidades, a juventude rural é
protagonista de lutas sociais e vítima da violência institucionalizada. As
mobilizações sociais mostram, sobretudo, os transbordamentos da questão agrária
frente aos conflitos gerados pela expansão do capital no campo.
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Notas
[i] A fundamentação desse texto parte das reflexões acadêmico
/metodológicas no
âmbito do grupo de pesquisa “Iniciativa BRICS de
Estudos Críticos sobre Transformações Agrárias” (BICAS). Trata-se de uma rede
de pesquisadores e pesquisadoras de universidades, em grande parte baseadas em
países dos BRICS. Tem como propósito estudar e problematizar transformações
agrárias internas, regionais e globais, inclusive os conflitos agrários da
América Latina, dentre os quais se inserem temas da juventude rural.
[ii]
Agamben (2009) define “casos paradigmáticos” como
recurso metodológico. Segundo o autor, alguns casos empíricos exercem papel de
paradigma na compreensão de um contexto mais amplo. Assim, estudar casos extremos,
como da violência na Colômbia, é representativo quanto a determinados fenômenos
sociais, frente à sua importância e representatividade. Casos paradigmáticos
podem assim, oferecer elementos de inteligibilidade de um contexto mais
ampliado, por intermédio de analogias, iluminações e ressonâncias.
[iii] De acordo com Graziano da Silva (2011), “a disparada dos preços
dos cereais em 2008 elevou a produção dos países ricos em quase 13%; nas
economias pobres e em desenvolvimento, o efeito limitou-se a 3,5%. Excluídos
Brasil, China e Índia, o aumento foi
de menos de 0,5%”.
[iv] Segundo Bresser-Pereira (2010, 56), esta crise emergiu devido a
uma combinação entre as políticas neoliberais e “[...] a financeirização,
ou capitalismo encabeçado pelo setor financeiro”. O aumento do crédito sob a
forma de títulos, combinada com a especulação, resultou em uma ampliação
artificial da “[...] riqueza financeira ou o capital fictício, que se expandiu
a uma taxa muito mais elevada do que a da produção, ou riqueza real”
[v] A partir de
2014, o preço do
petróleo caiu vertiginosamente, ficando em torno de US$ 30 dólares o barril em
2016. Essa queda deu-se, entre outros fatores, por um aumento da produção da
Arábia Saudita, afetando países como a Rússia, Venezuela e Irã (parte da política
energética adotada pelos Estados Unidos).
[vi] Depois dos embates relacionados ao Código Florestal (Sauer e França 2012), a preocupação e os conflitos estão
relacionados a uma série de propostas legislativas para mudanças no Código de
Mineração, as quais estão apensadas ao PL 1.610, de 1996, que “dispõe sobre a
exploração e o aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas, de que
tratam os Arts. 176, §1º, e 231, §3º, da Constituição
Federal”. Há ainda ameaças a assentamentos, pois a existência de minérios no
subsolo está ameaçando a expulsão de famílias assentadas (Sauer
e Albuquerque 2015) para a exploração mineral.
[vii] A ênfase na corrida mundial por terras se constituiu também em um
mecanismo de aumento dos preços das terras (Oliveira 2012) e oportunidades de
negócios – ou bloqueio dessas oportunidades, como afirmaram Hage, Peixoto e
Vieira Filho (2012) –, sendo que o mesmo se deu com a crise alimentar, pois
resultou em investimentos e aumento da produção (Silva 2011).
[viii] Acordos como a retomada do Mercosul (Mercado Comum do Sul), a
criação da ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América) e da
UNASUL (União de Nações Sul-Americanas) são importantes iniciativas (ou foram,
pois estão em pleno desmonte) nas relações sul-sul recentes.
[ix] Após o auge observado durante o ano de 2006, no governo Lula
(PT), o número de famílias assentadas passou por um declínio desde o governo Dilma Rousseff
(PT). Essa queda se acentuou a partir do
governo Temer e, diante
da completa paralisia da reforma agrária durante o governo Bolsonaro, a Contag
(Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e a Contraf (Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura Familiar) decidiram propor no STF (Supremo Tribunal Federal) uma
ADPF (ação de descumprimento de preceito fundamental). A ADPF 769 solicita que
sejam reconhecidas e sanadas “graves lesões” a preceitos da Constituição
Federal por órgãos federais, em razão da “paralisação da reforma agrária”.
Assinam, além da Contag e da Contraf, partidos de
oposição: PT, PSOL, PC do B, PSB e Rede Sustentabilidade.
[x] Relatos retratam os
bancos [China Development
Bank e China’s Export-Import
Bank] como parceiros (Sul-Sul) do desenvolvimento e enfatizam que as
instituições formais chinesas não interferem nos assuntos internos dos países
tomadores nem estabelecem condições da política macroeconômica para os seus
créditos, como fizeram as instituições baseadas em Washington (Hogenboom 2014, 633).
[xi] Além do aumento da
demanda de commodities, os acordos de
cooperação, inclusive os objetivos do Banco de Desenvolvimento dos BRICS, estão
colocados em investimentos de infraestrutura (Mckay et al. 2016). Esses investimentos
também impactam diretamente sobre usos da terra, pois criam condições para
maior exploração (inclusive conectando regiões mais distantes aos mercados
consumidores dos recursos naturais), provocando a valorização (aumento dos
preços) das terras, mas também gerando deslocamento (desterritorialização) e
conflitos com populações locais.
[xii]
Puyana e Constantino (2015, 111) afirmam que este
processo começou no início dos anos 2000 como “[...] parte do programa
governamental “going global” [tornando-se global],
lançado em 1999 e destinado a abrir novas oportunidades de investimentos para a
expansão do capital chinês no resto do mundo”, mas afirmam “os investimentos
chineses em terras na América Latina começaram a se generalizar a partir de
2008” (113), especialmente na Argentina e Colômbia.
[xiii] Segundo Oliveira (2017, 11), “embora a COFCO controle cerca de
145 mil hectares no Brasil, associado às quatro usinas de açúcar que adquiriu
através da Noble, é muito claro que
pretende se concentrar no comércio de commodities
e não na produção agrícola”.
[xiv] As aquisições da COFCO (maior processador e comerciante de
alimentos da China), “juntamente com a aquisição da Syngenta pela ChemChina, irá representar a maior e mais significativa
presença de capital chinês, não só no complexo brasileiro de soja, mas no agronegócio”
(Oliveira 2017, 11)
[xv] Publicado em novembro de 2015, relatório de entidades não
governamentais (REDE, GRAIN et al.
2015) apontou investimentos de fundos de pensão europeus e norte-americanos,
via um fundo global de terras agrícolas denominado TIAA-CREF Global Agriculture (TCGA) em
terras no Matopiba. Segundo Oliveira (2017, 8), junto
com a TIAA-CREF, empresas do agronegócio como, por exemplo, Cresud/Brasilagro, Adecoagro, SLC
Agrícola, El Tejar, Multigrain/Xingu
Agro e a V-Agro adquiriram mais de 750 mil hectares
no Brasil, aplicando especialmente capital europeu, norte-americano e japonês
(informações que também constam do relatório da GRAIN 2016).
[xvi] Quase a metade da representação internacional da Via Campesina é
composta por organizações da América Latina (Montenegro Gómez 2010), sendo que
as mesmas estão articuladas na Coordenação Latino Americana de Organizações do
Campo (CLOC).
[xvii]
O 14° Acampamento Latino Americano da Juventude, realizado na cidade de
Palmeira das Missões (RS), entre os 20 a 23 de novembro de 2014, foi uma
construção da Via Campesina e da Coordenadora Latino-americana das Organizações
do Campo (CLOC), evento sempre ocorria na Argentina e pela primeira vez
aconteceu no Brasil.
[xviii] O 5º Acampamento de Jovens de Conamuri,
Repatriación, Caaguazú,
Paraguai, 16 a 18 de fevereiro de 2016, foi formado por jovens camponeses,
indígenas e urbanos de diferentes departamentos do Paraguai, também vinculado à
CLOC-Via Campesina.
[xix] O Encontro Geral da Juventude Tupinambá, realizado na Terra Indígena
Tupinambá de Olivença (sul da Bahia), entre os dias 8 a 11 de dezembro de 2016,
estava vinculado à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e também
integrante da Via Campesina.
[xx] A TI Tupinambá de Olivença é formada por 11 comunidades (Serra do
Padeiro, Serra das Trempes, Mamão, Acuipe do Meio, Acuipe de Baixo, Lagoa do Mabaço,
Olivença, Aldeia Itapoã, Parque de Olivença, Aldeia
Tucum, Aldeia Tamandaré), as quais contaram com representações de jovens no
Encontro da Juventude Tupinambá.
[xxi]
O Boletim Técnico de Pobreza Multidimensional Departamental (DANE 2020, 3)
informa que “los departamentos que presentaron mayores porcentajes de personas en situación de pobreza multidimensional para el total departamental son: Vichada con 72,2%, Guainía con 67% y Vaupés con 66,5% y los departamentos que presentaron
menor incidencia de pobreza multidimensional fueron Casanare con 18,3% seguido de Arauca con 23,3%. En la
región Orinoquía-Amazonía, el departamento que presentó mayor variación fue Vichada con
un incremento de 8,7 puntos
porcentuales entre 2018 y 2019 pasando
de 63,5% a 72,2% respectivamente. Los cambios entre
2018 y 2019 fueron estadísticamente
significativos en total departamental y centros poblados y rural disperso para Vichada,
en cabecera para Amazonas y
Putumayo, y en centros poblados
y rural disperso para Guainía”.
[xxii] O termo CAI (conflito armado interno) denomina uma situação que
não é, propriamente, uma guerra civil, não é também uma série de ações
terroristas, nem se limita a um aumento abrupto de atos de violência isolados
(ONU 2013, 41).
[xxiii] Os núcleos da guerrilha comunista se transformaram em grupos de
massas. Em suas áreas de influência foram repartidas terras, criaram-se
mecanismos de trabalho coletivo e de ajuda para a exploração individual de
parcelas. Era aplicada a justiça por decisão coletiva na assembleia popular
(Ceará 2009, 205).
[xxiv] É o caso das “Fuerzas Armadas
Revolucionarias de Colombia” (FARC) e o “Ejército de Liberación Nacional” (ELN). Existiram também o
“Ejército Popular de Liberación” (EPL) e o “Movimiento 19 de Abril” (M-19), desmobilizados no período
de 1989 a 1990. Além desses, o “Partido Revolucionario
de los Trabajadores” (PRT)
e o “Movimiento Indígena Quintín
Lame” (Quintín Lame), ativos nos anos 1980, foram gradativamente
interrompidos a partir de 1991.
[xxv] Os principais focos de violência e expulsão da população indígena
coincidem com as regiões mais ricas em biodiversidade, onde se encontram 95%
dos recursos naturais colombianos. O aparato militar do Plano Colômbia
facilitou a implementação de projetos hidroelétricos, petrolíferos e de mineração,
patrocinados pelo Banco Mundial e por empresas multinacionais. Mais de um
milhão de hectares da floresta colombiana foram contaminados por agentes
químicos, sob o pretexto de combater o cultivo de coca, com um desastre
ecológico conhecido como “Tormenta Verde” (Cavarallo
e Mendonça 2002).
[xxvi]
Fraga e Gonzalez (2015, 31) tratam essa situação como uma forma sistemática de
administrar a morte na sociedade contemporânea. Os mecanismos de poder decidem
quem merece viver ou morrer, entre os que devem morrer se encontram mulheres e
jovens, fenômeno chamado de “necropolítica”.
[xxvii] Por exemplo,
nos documentos do Centro Nacional de Memória Histórica ou nos 12 Ensaios da
Comissão Histórica do Conflito e suas Vítimas, que estão na mesa de negociação
de Havana, o tema dos jovens não aparece, pois esses “não têm sido
representados na mesa de Havana” (Fraga e Gonzalez 2015, 31).
[xxviii] Como fenômeno massivo, sistemático e de longa duração, o “desplazamiento forzado” se
relaciona com a juventude rural por ser em grande medida relacionado ao
controle de terras e territórios estratégicos. Alguns estudos apontam que o
número de colombianos expulsos de suas terras pode chegar a perto de cinco
milhões, sendo aproximadamente 70% de vítimas menores de idade. Mais que a
confrontação entre atores armados, existem interesses econômicos e políticos
que pressionam o desalojamento da população civil e seus jovens. É o caso das
pressões exercidas pelo narcotráfico, pelos conglomerados empresariais e outros
agentes (Suarez et al. 2014, 71).
[xxix] A violência sofrida pelos jovens possui fortes
vínculos com a vulnerabilidade social em que se encontra a juventude nos países
latino-americanos, dificultando, por conseguinte, o seu acesso às estruturas de
oportunidades disponíveis nos campos da saúde, educação, trabalho, lazer e
cultura. O contingente de jovens em situação de vulnerabilidade, aliada às
turbulentas condições socioeconômicas de muitos países latino-americanos
ocasiona uma grande tensão entre os jovens, que agrava diretamente os processos
de integração social e fomenta o aumento da violência e da criminalidade
(UNESCO 2002, 9).
[xxx] O plebiscito foi aprovado pela Suprema Corte colombiana, em julho
de 2016, mas os magistrados deixaram claro que a aprovação do acordo dependeria
apenas da sanção presidencial, ou seja, submetê-lo ao crivo popular foi uma
opção mais política do que jurídica (Palomino 2016; Salek 2016).