Eutopia. Revista de Desarrollo Económico Territorial  N.° 21, junio 2022, pp. 30-51

ISSN 13905708/e-ISSN 26028239

DOI: 10.17141/eutopia.21.2022.5348

 

 

Sistemas territoriais na Amazônia e o papel das cidades para o desenvolvimento regional: a biorregião de Parintins (am)

 

Territorial systems in the Amazon and the role of cities for regional development: the bioregion of Parintins (am)

 

Estevan Bartoli. Universidade do Estado do Amazonas, ebartoli11@gmail.com , https://orcid.org/0000-0003-1238-3187

 

 

Recibido: 23/02/2022 - Aceptado: 18/05/2022

Publicado: 30/06/2022

 

 

Resumo

 

Reterritorialização de populações diversas situadas hoje nas cidades da Amazônia (principalmente em extensas periferias), consolidam uma densa e diversificada economia popular. Essa economia urbana com intensa mobilidade regional é interpretada enquanto Sistema Territorial Urbano-Ribeirinho (STUR), que possui duplo papel na necessidade de complementar a economia urbana enquanto exerce ligação entre os pontos de extração de recursos regionais para a cidade. A partir do modelo STUR, objetiva-se analisar atividades de extração de recursos regionais, averiguando quais espécies vem sofrendo maior exploração e consequentemente indícios de declínio da população e escassez no mercado local.  Pretende-se ainda contribuir na formação de metodologias para repensar o caráter relacional e processual em estudos sobre cidades na Amazônia. Demonstra-se que há reduzida capacidade de processamento de tais recursos por atividades urbanas, com irrisória agregação de “valor” aos produtos, sinalizando os perigos da continuidade de exploração de determinadas espécies. Constata-se que a dinâmica do STUR propicia usos socialmente necessários de recursos alimentares ou madeireiros elementares na manutenção da vida entre cidades e interiores.

 

Palavras chave: Sistemas territoriais, Cidades, Biorregião

 

Abstract

Reterritorialization of diverse populations located today in Amazon cities (mainly in extensive outskirts), consolidate a dense and diversified popular economy. This urban economy with intense regional mobility is as the Urban-Ribeirinho Territorial System (STUR), which has a double role in the need to complement the urban economy while exerting a connection between the points of extraction of regional resources for the city.

As from the STUR model, the objective is to analyze regional resource extraction activities, investigating which species have been undergoing greater exploitation and consequently evidence of population decline and scarcity in the local market.  It is also intended to contribute to the formation of methodologies to rethink the relational and procedural character in studies on cities in the Amazon. It is intended to demonstrate that there is reduced processing capacity of such resources by urban activities, with derisive addition of value to the products, signaling the dangers of continued exploration of certain species. It appears that the dynamics of STUR provides socially necessary uses of resources destined for food or timber are elementary items in the maintenance of life between cities and interiors.

 

Key words: Territorial System, Cities, Bioregion

 

 

Introdução

 

Com o intenso processo de urbanização na Amazônia associado ao crescimento demográfico e espacial das cidades, tem se questionado os papéis dos núcleos urbanos no ordenamento territorial, e os consequentes impactos no uso de recursos regionais através da demanda urbana e as alterações nos hábitos alimentares. A reterritorialização de populações diversas situadas hoje nas cidades (principalmente em extensas periferias), consolida uma densa e diversificada economia popular. Essa economia com intensa mobilidade na sub-região[i] de Parintins é interpretada em Bartoli (2017; 2018; 2019) enquanto Sistema Territorial Urbano-Ribeirinho (STUR), que possui duplo papel na necessidade de complementar a economia urbana enquanto exerce ligação entre os pontos de extração de recursos regionais para a cidade. Ao passo que abastece e forma a economia popular (feiras, comércios variados, pequenas indústrias, etc.), também abastece grupos mercantis urbanos dominantes (entrepostos pesqueiros, madeireiras, comércios locais).

O objetivo do texto consiste em apresentar como o modelo de análise STUR tem interpretado a capacidade que as cidades da sub-região de Parintins – AM (Baixo Amazonas), tem em realizar extração de recursos regionais e as mediações das cidades. Averigua quais espécies vem sofrendo maior exploração e consequentemente indícios de declínio da população e escassez no mercado local, prejudicando a soberania alimentar.  O STUR é relativo à análise das redes locais de sujeitos com enfoque nas variadas manifestações da economia popular e dos setores dominantes pertencentes ao capital mercantil e suas variadas relações escalares. Apresenta-se elementos que evidenciam a existência de uma biorregião compondo uma das dimensões da noção de patrimônio territorial[ii]. 

Os setores comerciais dominantes (capital mercantil) da sub-região em voga, receptam alimentos industrializados e/ou oriundos do agronegócio brasileiro através de redes longas vindas de localidades nacionais diversas, redistribuindo às cidades. O STUR transporta para interiores tais produtos e retornam com produtos para autoconsumo vendas em feiras de produtos regionais (extrativos e/ou pescado) ou da agricultura. Formam em bairros populares densas redes de complementação alimentar constituídas por relações de parentesco, vizinhança e amigos (redes de “agrados”).

Demonstra-se ainda que há reduzida capacidade de processamento de tais recursos por atividades urbanas, com irrisória agregação de valor aos produtos e que muitos deles como o caso do pescado poderiam ser melhor absorvidos pelas camadas populares. Mas demonstra-se que existem usos socialmente necessários de recursos que são itens elementares na manutenção da vida entre cidades e interiores.

Pretende-se contribuir na formação de metodologias para repensar o caráter relacional e processual em estudos sobre cidades na Amazônia. A análise empírica ocorre dando sequência à proposta metodológica presente em Bartoli (2017, 2018a, 2018b), onde “calibramos” os procedimentos metodológicos e dimensões basilares do modelo STUR seguindo as seguintes etapas: a) análise da influência do relevo sub-regional como condicionador das relações e fluxos dos principais nódulos urbanos; b) levantamento de dados secundários relativos à densidade de ocupação do território em instituições diversas (secretarias municipais, institutos governamentais, sindicatos, colônias de pescadores, etc.); c) realização de trabalhos de campo com objetivo de identificar e descrever as principais práticas espaciais das redes de sujeitos locais. d) aplicação de formulários semi-estruturados a donos de embarcações e entrevistas a empresários, lideranças do setor pesqueiro, sindicatos, associações de produtores rurais e de comerciantes, visando entendimento de como são tecidas as redes de interação entre STUR, capital mercantil e  cidades/interiores; e) análise da expansão urbana e as consequências na configuração da morfologia urbana; f) uso de imagens de satélite e Drone para identificação de elementos na análise morfológica; g) elaboração de mapas, tabelas e quadros nos auxiliando na descrição dos padrões espaciais inerentes da interação STUR/ capital mercantil. Elenca-se critérios para averiguação de coletivos organizados, visando caracterização desses subsistemas que articulam espaços urbanos aos interiores afetando o ordenamento territorial, levando à busca da análise da qualidade das relações territoriais.

Como resultados, demonstra-se que as economias urbanas incompletas possuem padrões de circulação, uso de recursos e consumo que evidenciam centralidades e polarizações entre as cidades e comunidades do entorno. Forças centrípetas e centrífugas ocorrem influenciadas por setores do capital mercantil urbano, implicando intensa distribuição de alimentos industrializados para os interiores e denotando a interpenetração e complementaridade com o Sistema-Territorial Urbano-Ribeirinho.  

 

Abordagem territorial: desafios para pesquisas e a biorregião urbana

 

Os desafios e avanços no tipo de análise proposto no modelo STUR, pela amplitude de critérios e dimensões envolvidos nas complexas territorialidades analisadas, requer retomar aspectos coevolutivos dos sistemas territoriais que compõem o território, sendo necessário aprofundamentos de alguns aspectos em pesquisas futuras.

Primeiramente, considerar que influência humana interferindo na evolução da floresta resultou no redesenho da natureza pela intervenção da cultura, tornando-a soberana em relação à manutenção alimentar de sua população como foi outrora (Clement; Junqueira, 1998). O violento processo de invasão colonial posterior ao século XVI introduziu mudanças nas lógicas espaciais às populações autóctones através da escravização, do etnocídio e da destruição de vínculos territoriais. A desterritorialização e rompimento da trajetória humana coevolutiva a partir da aceleração do processo urbano, induziu modificações abruptas da configuração territorial, alcançando modificações em dinâmicas econômicas capitalistas incapazes de suprir o abastecimento alimentar até o século XIX. As permanências, quando tratamos do modelo STUR, estão associadas às longas e constantes trajetórias realizadas por transporte fluvial de setores populares, cultura herdada dos deslocamentos indígenas, mas principalmente de ciclos econômicos passados (sistema de aviamento principalmente), através do uso de lentas embarcações que fortaleceram historicamente o capital mercantil urbano: em troca de produtos variados e principalmente da borracha, a itens alimentares eram introduzidos de fora pelos regatões e a produção de alimentos proibida nos seringais.  Tais comerciantes chamados de regatões eram muito presentes desde o ciclo da borracha no final do século XIX, realizando o intercâmbio entre áreas extrativas e as vilas. As funções estritamente atreladas ao comércio que exerciam os regatões são encontradas atualmente no Baixo Amazonas a partir de variada tipologia de embarcações. Análise do uso das embarcações nos fornece boas indicações das territorialidades na relação STUR/STUF, tanto para extrativismo, pesca, produção agrícola, etc., como cumprindo função de moradia[iii].

Outro aspecto que merece atenção, está no entendimento de que cidades também são sistemas abertos vinculados a aspectos coevolutivos junto ao sistema mais amplo (formando o milieu urbano), sendo passíveis de trocas de energia, informação e matéria. Autores como Dematteis (2005; 2007; 2008) e Magnaghi (2010a, 2010b), ressaltam valorização “genético-evolutiva” do território local cuja variedade de opções de recursos são elementares para o desenvolvimento territorial. A ideia de que existem esferas evolutivas coexistindo no desenvolvimento das sociedades (Harvey 2011) pode ser complementada por constatações de que as dinâmicas sub-regionais possuem um substrato material e cultural herdado (sedimento territorial) a partir das quais surgem formas híbridas de arranjos territoriais.  

Portanto, a análise do conjunto de práticas espaciais e a capacidade de abertura ou fechamento operacional dos sistemas evolutivos se faz necessária para considerar diversas modalidades de estratégias que redes de sujeitos constroem como resistências, o que remete à considerar a produção alimentar. Variam pela intensidade de relações com o espaço intraurbano ou rural, ocorrendo relações multiescalares e níveis de submissão aos sistemas dominantes.

Em Bartoli (2017) demonstramos a multidimensionalidade presente desses retornos a territórios de redes de sujeitos como indígenas, pescadores, extrativistas e produtores de embarcações regionais. Tais “retornos” foram diferenciados pela maneira com que os grupos formularam projetos em coletivos organizados, alterando o modo como articularam territorialidades reordenando territórios a partir da cidade de Parintins. O “retorno ao território” trata-se da capacidade de grupos que ao se rearticular no ambiente urbano (usando as possibilidades que a cidade oferece), criando estratégias de sobrevivência e (re)construindo territorialidades ativas e manutenção (ou retomada) de vínculos territoriais.

De acordo com a capacidade de resistência, politização e autonomia dos sujeitos, pode ocorrer uma adaptação ou não das possibilidades de interpretação dessas “aberturas” e “novidades” como recurso (Machado 2003, 2005). Justamente no quesito relativo à produção de alimentos esse item possui um cenário preocupante. Há insuficiência na produção de alimentos e baixo aproveitamento das possibilidades locais como as que vão desde o manejo de caça e peixes, até a produção de Plantas Alimentícias Não Convencionais – PANC (Kinupp y Lorenz 2014). Como demonstramos a seguir, a abertura da rede urbana sub-regional de Parintins, tem propiciado enorme perda de soberania alimentar pela concorrência de produtos vindos de fora.

Ressalta-se a importância da análise de aspectos mais funcionais dos circuitos relacionais entre os espaços rurais e urbanos, que formam (des)continuidades passíveis de serem cartografadas.  A circulação necessária dos sujeitos do STUR contrasta com formas de circulação alienadas no interior da relação entre economia popular e setores do capital mercantil. Os mecanismos de auto-organização atuam sobre uma boa base de conhecimento acerca das complexidades locais, podem reforçar casos positivos de causalidade circular (Bettencourt 2015), evitando tanto os custos coletivos da cidade dispersa (Camagni 2007), como os longos deslocamentos cidade-interiores que reforçam a dependência aos mercados locais.

Como veremos adiante na apresentação dos dados e resultados, interpretada como um espaço geográfico relativizado que se molda em função das técnicas, das estruturas econômicas e sociais e dos sistemas de relações (Damiani 2006), a situação condiciona o milieu urbano, mediador principal por conter condições para a ação. A situação dos diversos subsistemas compondo a dinâmica cidade-território-região, delineia condições de contexto cujas diversas dinâmicas sociais são efetivadas por territorialidades. A Interpretação da cidade como milieu afetando o ordenamento territorial, requer tanto entendimento da materialidade e dos aspectos culturais que os sistemas territoriais configuram, quanto a inclusão da relação com sítio, geomorfologia e morfologia urbana.

Se faz necessária análise das redes de natureza e temporalidade diversas que se justapõem. É o processo sazonal de cheia/enchente e da vazante/seca das bacias hidrográficas que determina os fluxos de transporte, a produção de várzea, o extrati­vismo, a caça e o custo de vida nas cidades (Moraes y Schor 2010 a/b). Exemplo dos estudos de Moraes (2012, 2014) sobre a relação entre o mercado de bagres e a rede urbana, constatou que a há uma articulação local – global cujas cidades entre Tefé e Tabatinga não se submetem a hierarquia da rede urbana do país. Salienta que na enchente há aumento de preço da cesta básica e do pescado devido à escassez, levando a população a alternativas alimentares de baixo custo que são os enlatados, ovos de galinha e frango congelado que, oriundos de Manaus, intensificam os fluxos de transporte nesse período.

Por fim, é latente desvendar lógicas de “geografias do atraso” e manutenção de poder relacionada às frações arcaicas do capital mercantil (Cano 2010, 2011) e existências de redes ilícitas (Souza 2009). Essenciais para entender a ocupação (predatória ou não) das vastas porções do território que estão sobre influencia e comando das cidades (Brandão y Cano 2006).

Frente a essa listagem de desafios para análise de situações amazônicas, entendemos que redes de sujeitos locais realizam processamento e intercâmbio de recursos regionais, regulando fluxos de matéria, energia e informação, onde as cidades, interpretadas como nódulos mediadores de sistemas territoriais são ambientes complexos que propiciam “ajustes” (reterritorializações) frente às oscilações externas e crises a que foram submetidas durante ciclos econômicos regionais (Bartoli 2017a, 2017b). Os papeis e funções das cidades do Baixo Amazonas foram sendo afetados pelo processo acelerado de crescimento urbano e êxodo rural. Vínculos territoriais foram alterados, rompidos e, em muitos casos, recompostos pela maneira como sujeitos se articulam na cidade.

Bartoli e Sposito (2016) sintetizam em fluxograma (Figura 1) elementos sobre a interação entre a cidade e escalas diversas que influem na composição do milieu, cada vez mais afetado pelo processo urbano na Amazônia.

 

Figura 1Milieu urbano e escalas escalares interativas

Fonte: Bartoli e Sposito (2016)

 

Nesse contexto, o conceito de biorregião busca renovar as bases das “tradicionais regiões” naturais, para enfim, definir a biorregião como amálgama de elementos naturais e sociais (Martins 2017). A biorregião pode ser ligada também às representações que os sujeitos têm sobre ela e sobre as formas de vida que nela se expressam, como fatores indissociáveis (Aberley 1999). A ideia de biorregião urbana aplicada ao planejamento territorial possui  intenso debate em estudos sobre regiões da Itália[iv], que procuram valorizar a tutela e valorização ativa do patrimônio territorial e paisagística, visando contribuições ao planejamento para desenhar cenários estratégicos de transformação ativa do território (APAT 2007; Bernetti y Chirisi 2007; Bologna 2010; Fanfani 2010). Os autores italianos problematizam a capacidade de modelos de ocupação, propondo regras reprodutivas e produtivas visando favorecer o desenvolvimento reterritorializante, respeitando os limites dos ecossistemas locais. Um dos expoentes mais importantes da concepção de biorregião, Magnaghi (2020a, 2010b) ressalta a construção de novas centralidades regionais emergentes do reconhecimento da pluralidade e peculiaridade dos sistemas territoriais e urbanos, assim como a qualidade ambiental e paisagística do ambiente ocupado.

Num contexto histórico-geográfico muito diferenciado, a análise empírica da biorregião de Parintins visa sistematização de dados sobre as atuais redes de sujeitos que utilizam recursos presentes no território, considerando num sentido geral: a) a densidade das relações territoriais locais e seus respectivos usos de recursos considerando os conflitos e tensões; b) o papel das cidades no processamento, consumo e mediação das práticas espaciais quanto aos usos do território; c) as territorialidades populares existentes a serem potencializadas a partir da reconstrução de paisagens funcionais interconectadas ao patrimônio ambiental herdado (sociocultural e evolutivo), e num sentido mais amplo com o patrimônio territorial multidimensional (Bartoli 2015 a, 2015 b).

 

O modelo sistema territorial urbano-ribeirinho

 

O STUR é um modelo analítico que propõe detalhar o comportamento espacial dos circuitos informais da economia popular inseridos em contexto específico. Considerações sobre dinâmicas transescalares são feitas para melhor detalhamento das complexas relações existentes com a rede urbana regional com forte influência da metrópole Manaus em disputa com a rede urbana paraense, e escalas nacionais e globais.

A partir de autores da abordagem territorial, visa-se contribuir na formação de metodologias para repensar o caráter relacional e processual em estudos sobre cidades na Amazônia e suas áreas de entorno. Questiona-se o papel das práticas espaciais de redes de sujeitos variados, cuja análise empírica ocorre a partir de grupos ou coletivos organizados: Colônia de Pescadores, Associação de Produtores rurais, moveleiros, indígenas, produtores rurais, cooperativas, etc. Para isso se faz necessário descrever aspectos que compõe a estrutura dos sistemas urbanos em questão e as relações com recursos locais e seus usos pelas redes de sujeitos. Nesse contexto a abordagem territorial é entendida como (i)material, histórica, relacional e multiescalar do desenvolvimento e do território, da desterritorialização e da reterritorialização, reconhecendo descontinuidades, desigualdades, ritmos, diferenças, identidades, temporalidades e territorialidades (Saquet 2007, 2011).

Critérios para averiguação de coletivos organizados e demais grupos são elencados, visando caracterização desses subsistemas que articulam espaços urbanos aos rurais afetando o ordenamento territorial, constituindo sistemas territoriais, levando à busca da análise da qualidade das relações territoriais. Os critérios de valoração e análise empíricas realizado em Bartoli (2017) foram: a) a relação histórico-cultural e relações com o sítio e situação da cidade; b) relação com os recursos locais, capacidade de processamento e “sustentabilidade”; c) relações com o milieu; d) abrangência das áreas de influência de atividades econômicas; e) capacidade de ativação do patrimônio territorial e formação de “trabalho novo”; f) autonomia relativa frente às redes locais de poder e capacidade de criar relações em escalas variadas; g) coesão do grupo e recorrência/intensidade das ações, estabilidade da agregação e relações institucionais.

Dinamizado por populações que se estabelecem nas cidades, moldando espaços intraurbanos e realizando intensos deslocamentos com as áreas de entorno, o papel mediador que o STUR abrange aparece em cinco vertentes apresentadas em avançoes de estudos posteriores (Bartoli 2018a; 2018b): i) zonal e topológico: conectando a cidade por meio de redes diversas a localidades do entorno sub-regional através da navegação fluvial e ribeirinha; ii) produção e configuração do espaço urbano em bairros oriundos de ocupações irregulares e de fragmentos do espaço intraurbano, constituindo fixos úteis para a navegação (beiras de rios populares, por exemplo); iii) formação de circuitos econômicos duais e complementares: sendo dinamizado principalmente pela economia popular informal mas em interação constante com as esferas de valorização do capital mercantil dominantes na cidade (saltos escalares ocorrem em relações diversas que ultrapassam a sub-região); iv) organizacional e institucional: outros tipos de coalizão de sujeitos ganham relevância (cooperativas, associações, colônias de pescadores, etc.), mediando ações que se desdobram em práticas de governança sobre o território; v) simbólico-cultural: traços da cultura cabocla e ribeirinha, indígena ou de conhecimentos populares tradicionais são absorvidos, hibridizados e ressignificados pela inserção ao processo urbano.

Devido ao desemprego urbano e formação de extensas periferias em bairros oriundos de ocupações irregulares, o STUR cumpre importante papel de complementação da base alimentar popular. Os sujeitos mantém vínculos territoriais através práticas culturais (pescar, coletar, plantar), abastecendo feiras, propiciando subsistência e formando redes de trocas de alimentos entre parentes e amigos, fato constatado nos estudos de Schwade (2016).

A figura 2 sintetiza a interação e composição entre os sistemas Territoriais, num modelo geral construído ao longo dos avanços das constatações empíricas posteriores, cujas características variam a partir da situação de cada cidade, composição dos subsistemas e pela variedade de estratégias e territorialidades que sujeitos constroem. As circunferências pontilhadas (permeabilidades e interpenetrações) representam a abrangência dos sistemas e interações entre o STUR e o sistemas dominante pertencente ao capital mercantil (Sistema Territorial Urbano-Fluvial - STUF), atingindo sistemas territoriais ribeirinhos e indígenas com pouca interação com a cidade. Pela aceleração do processo urbano, cada vez mais o STUR e o STUF se complementam e interpenetram com intensificação da demanda por recursos naturais na cidade, e propagação do modo de vida e consumo urbano.

Figura 2: interações entre sistemas territoriais mediadores da influência urbana.

Legenda:

A - Tensões e conflitos: produção do espaço urbano (ênfase nas beiras de rio).

B - Hibridização: elaboração de soluções criativas e adaptações técnicas em instrumentos de trabalho, moradias, tipos de embarcações, circuitos de circulação fluvial e outras formas e práticas espaciais.

C – Saltos escalares diversos associado tanto ao capital mercantil, como da economia popular na formação de redes urbanas. D - Extração de recursos regionais (garimpos, madeira, até mesmo areia e seixo para construção civil) sem processamento local, mantendo sujeitos populares que abastecem os fluxos em grau elevado de territorialidade passiva.

Fonte: BARTOLI (2021) adaptado.

 

Composto por frações do capital mercantil[v], o Sistema Territorial Urbano-Fluvial (STUF) cada vez mais se sobrepõe, explorando e absorvendo dinâmicas ribeirinhas, se aproveitando da enorme capacidade de deslocamentos dos sujeitos que compõem o STUR. Usamos o termo fluvial considerando que, para os sujeitos que impulsionam esse sistema, os rios são usados primordialmente para circulação de mercadorias. Não há intencionalidade de manutenção de práticas cotidianas que tem no rio aspecto simbólico, cultural/identitário, lúdico ou para subsistência (ribeirinho). As práticas espaciais do STUF resumidamente: i) causam maior rebatimento espacial, pois possuem maior poder de organizar espaços partindo da posse de lotes e glebas, materializados principalmente nos portos, o que confere maior extração de renda (Bartoli 2018b 2020 d; Marques y Bartoli 2020); ii) Incentivam circuitos econômicos geradores de maior impacto ambiental em extensas áreas a partir de ações como extração de madeira, areia, seixo e criação de gado, búfalos, pesca comercial e industrial, etc.; iii) uso de embarcações grandes de ferro e madeira, conferindo vantagens competitivas ao obter produtos de Manaus e do Pará, o que os tornam os maiores distribuidores de alguns produtos na sub-região, como materiais de construção, combustíveis e alimentos industrializados (Silva y Bartoli 2019). O STUF passa a ordenar a divisão territorial do trabalho a seu favor, afetando os demais sistemas ao impor uma lógica mais funcional, ditando preços e controlando o mercado urbano de absorção dos produtos e mercadorias advindos de florestas, rios e da produção rural. A presença dessa fração do capital mercantil varia de acordo com o papel que a cidade cumpre na rede, levando em conta sua polarização e centralidade.

As duas dinâmicas (fluviais e ribeirinhas) não se excluem, mas se complementam e se sobrepõem na medida que os produtos adentram na rede urbana amazonense tendo Parintins (AM) como primeiro porto de distribuição sub-regional. Exemplos constatado em nossos trajetos de Parintins (AM) aos municípios do entorno para trabalho de campo[vi], foram a enorme quantidade de alimentos importados de outros estados e países que abastecem o Amazonas, demostrando a fragilidade relativa à soberania alimentar que tem impactado em mudanças nos hábitos alimentares e na composição da cesta básica regional (Moraes 2008 2012 2014).

Após percurso de embarcações de ferro vindas do Pará, os produtos são carregados em embarcações de madeira menores até as cidades menores. O porão e o piso térreo são geralmente usados para cargas de mercadorias, veículos, maquinários e combustíveis. O piso superior transporta viajantes acomodados em redes que se deslocam a Parintins visando acessar serviços de saúde, ensino e diversos outras polarizações. A figura 3 apresenta etapa importante da formação da rede urbana, pois na embarcação de madeira fabricada por artesãos locais em estaleiros tradicionais (Bartoli 2019), são transportados produtos cuja economia local amazonense possui dificuldades de disputa concorrencial. A melhoria das condições de tráfego da rodovia BR-163 ligando Cuiabá (MT) a Santarém (PA) após 2010, tem propiciado penetração de maior quantidade de frutas, verduras, conservados, embutidos, ovos e produtos agroindustriais variados na sub-região. Estes produtos chegam a Parintins via fluvial, oriundos do porto de Santarém. Isso ocasionou competição e desestímulo dos produtores rurais locais, aumentando a importação de frutas e legumes (Bartoli 2020). A importação de ovos vindos de Goiás e Mato Grosso tem sido igualmente crescente. Chama atenção itens de distâncias exorbitantes, como peras vindas da Argentina, uvas oriundas do Vale do rio São Francisco, abacates de Minas Gerais e maçãs de Santa Catarina (figura 2).

Figura 3 – Carga de produtos partindo de Parintins (AM) rumo a Maués (AM)

Fonte: Trabalho de campo (10/2018)

 

No geral, dinâmicas econômicas estagnadas na sub-região refletem baixa variedade de atividades produtivas das cidades, mesmo em Parintins considerada cidade média de responsabilidade territorial (Bartoli et al 2020). A produção agropecuária deste município, não é suficiente para o abastecimento local. Em decorrência a importação de alimentos especialmente de produtos oriundos da agroindústria brasileira, como frango congelado, calabresa, e outros produtos de importância para a cesta básica familiar como arroz, açúcar e feijão, é de suma importância (Moraes 2008).

Segundo o relatório de Trânsito Interestadual e Intermunicipal de Vegetais e seus Produtos e Subprodutos (2018), a origem dos produtos agrícolas importados pelo município de Parintins corresponde a 96,05 % oriundos de Santarém, 3,65 % de São Paulo e 0,3 % de Belém (figura 4).

 

Figura 4: Volume (kg) e valor da importação (R$) de frutas pelo município de Parintins em 2015

Fonte: ADAF/Parintins. Relatório de Trânsito Interestadual e Intermunicipal de Vegetais e seus Produtos e Subprodutos. 2018.

 

Essa crescente importação de alimentos com formação de enorme déficit na balança comercial do Amazonas (SEDECTI 2020), está associada à escassa presença de setores produtivos na maioria das cidades do Amazonas, relegando seus papéis a função de localidades de baixa complexidade na composição da divisão social e territorial do trabalho, mas que revela alta complexidade quando consideramos a relação STUR/STUF.

 

O modelo stur aplicado ao baixo Amazonas: resultados e discussões.

 

Em Bartoli (2017) analisamos subsistemas que compõem a economia de Parintins. Pesca e extração madeireira tem sido duas das maiores atividades urbanas e necessitam ser repensadas para evitar a super exploração em curso e suprir as necessidades das populações locais, embasando a noção de biorregião proposta. Há domínio do mercado por três empresas receptoras de pescado pertencentes ao STUF na cidade que exportam para todo o país. Uma delas que recebe parte do pescado é a Só Peixe (Tabela 1). Aproveitando a desorganização do setor, têm enorme lucro na compra de espécies variadas e nos chamados peixes de pele lisa. Com a rejeição dos peixes de pele lisa pelo mercado local, formam-se preços baixos na venda para a empresa.

 

Tabela 1: Entrada de pescados de abril a dezembro de 2016 na empresa Só Peixe.

Espécie

Quilos

Espécie

Quilos

Espécie

Quilos

Dourada

46.400

Babão

7.403

Sardinha

301

Surubim

144.540

Pirapitin-ga

352

Traíra

1.913

Pirarara

56.424

Curimatã

3.207

Orana

2.319

Filhote

13.781

Pacú

19.223

Apapá

98

Mapará

100.118

Aruanã

45.248

Cara de gato

162

Furinha

43.815

Tucunaré

4.600

Jaraqui

4.180

Jaú

8.291

Bocudo/ mandu-be

22.313

Aracú

29.888

Piaba

58.759

Acara-açu

5.014

Arraia

322

Pescada

20.608

Bacú

1.096

Piranam-bu

10.087

Barbado

1.946

Matrinxã

1.282

 

 

Fonte: Bartoli, 2017.

 

Não há por parte de pescadores locais ou da Colônia (Z-17) e Sindicato na cidade qualquer tipo de beneficiamento do pescado. Tampouco existem melhorias de infraestrutura para recepção e venda, como terminais pesqueiros ou feiras de cooperativas que diminuam o preço final. Isso encarece os preços nas feiras de bairros e diminui o consumo de pescado por populares. Os pescadores ainda são submetidos a abastecer o comércio urbano de forma precária com sucateamento dos órgãos fiscalizadores. O declínio do pescado nos lagos e rios do baixo Amazonas fazem com que empresas financiem deslocamentos cada vez mais longínquos, acarretando maior exploração de trabalhadores da pesca pertencentes ao STUR (Bartoli 2019b).

Sobre o consumo de madeira, os dados apontam que grande parte é advinda de exploração ilegal, sem plano de manejo ou certificação. A Associação dos Moveleiros de Parintins (AMOPIN) possui 48 unidades produtivas, gerando grande preocupação por parte dos produtores que percebem a fragilidade do setor quanto a diminuição de estoques na sub-região. A pressão dos órgãos de fiscalização atualmente sucateados, desmontados e insuficientes para atuação local, é simultânea à ausência de planos de manejo e certificação, que coloca em xeque a exploração. O cenário é preocupante considerando a fragilidade dos mecanismos de controle, somado às áreas cada vez mais distantes onde ocorre a extração com presença de conflitos severos. Basta lembrar a maior apreensão ilegal da história em 2020 ocorrida num dos rios que entrecortam a sub-região[vii]. Tais fatores impelem fragilidade ao setor e isso passa a impactar, negativamente, no tipo de uso do território. Confere-se nesse consumo a demanda para extração ilegal sobrecarregando a capacidade de reposição natural das espécies. Já há uso de placas de MDF quando ocorre falta de madeira no mercado local.

É notável, em diversas atividades com uso de madeira de Parintins a inexistência de certificados de origem, principalmente o Documento de Origem Florestal (DOF). Isso ocorre mesmo tendo na cidade o Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Amazonas (IDAM) como mediador para obtenção desse documento junto ao Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM). A análise reforça a importância do caráter mediador da cidade e das redes de sujeitos locais na produção de territórios e no controle e processamento de recursos.

Sobre a mediação urbana na produção de e comercialização de guaraná indígena, a experiência recente do desenvolvimento do consórcio indígena em Parintins (Nusoken) aparece como frutífera manifestação de como a cidade pode engendrar uma miríade de projetos na constituição de territórios. Um território zonal vinculado a condições materiais e naturais em altos cursos de rios na Terra Indígena (TI), conectado ao nó relacional (a cidade enquanto milieu) a partir de redes sociais, políticas e institucionais, possibilita saltos de escalas para atingir mercados externos na exportação de produtos diversos. O principal item, waraná (guaraná - contrastando com ancestrais práticas ritualísticas ou alimentares), é agora produto para o mercado e acompanha a luta e tentativa da etnia em reinventar seu contexto, se aproveitando das vantagens que a cidade propicia.

Amplas áreas conectadas a partir dos rios mantêm as práticas espaciais para sustento do grupo e uso de recursos regionais mediados pela esfera urbana. Constata-se que há criação de relações escalares externas mais amplas e diversas pelo consórcio e maior variedade de projetos internos ligados à educação indígena, agroecologia, soberania alimentar, entre outros. Tecem, com a cidade, evolução organizacional e coesão do grupo. Essa evolução das relações territoriais propiciou a reconfiguração de mediações históricas, antes mais dependentes de atravessadores locais e da igreja católica. O rumo tomado foi no sentido da conquista de certa autonomia relativa. Hoje o consórcio não abastece de maneira submissa o circuito mercantil urbano com fornecimento de produtos a baixo custo (Bartoli 2015 b).  

Mas essa territorialização da etnia está também envolta em contradições, onde o guaraná é objeto de lutas de apropriação por parte de distintos coletivos. Diversos atores se enfrentam, se excluem e/ou se coordenam para defender a especialização do produto na busca de indicadores geográficos de origem, que tem sido central em todo o processo de territorialização (Pinton 2016).

O CPSM tem maior grau de mobilização, aprendizado político e links com ambientes externos (pesquisadores, redes de comércio alternativo, entre outros). Em função disso, a territorialidade do grupo veio se transmutando nos últimos anos para a multiplicação de nexos territoriais a partir da migração para a cidade. Isso formou um território múltiplo de várias dimensões e em diferentes frentes de reconstrução ou “reinvenção” da etnia que os próprios membros do grupo admitem estar passando. Descrevemos as etapas da evolução territorial do consórcio que tem a cidade como nó articulador de atividades.

Em 2019 ampliamos a área de estudo a partir do projeto Rede urbana, Tipologia de Cidades e Sistemas territoriais Urbano-ribeirinhos no Baixo Amazonas. Os resultados foram apresentados em diversas publicações (Bartoli 2019a; 2019b; 2020a; 2020b; 2020c; 2021a; 2021b) que em síntese revelaram algumas características comuns entre os municípios estudados:

a)               Duas “forças” em direções de vetores partindo das cidades para interiores e no sentido inverso, dialeticamente, compõem a maneira com que o STUR realiza sua circunscrição espacial. A força centrípeta no STUR consiste no movimento de populações que migram na busca de benesses e melhorias que a cidade oferta, como no acesso a serviços de educação e saúde, instituições de fomento/apoio à produção, bancos, mercados e tantas outras “facilidades” urbanas. Isso induz novos contextos de inserção de sujeitos na cidade e requer formação de complementos de renda e obtenção de alimentos nos interiores. Essa demanda impulsiona parte dos sujeitos novamente aos interiores (força centrífuga), que levam uma série de produtos industrializados configurando aspectos do processo da urbanização extensiva (Monte-mór 1994, 2006). Essa força centrífuga também ocorre pela busca do complemento dual: através da demanda de produtos regionais ou produção rural e pecuária, a economia mercantil dominante influencia e incentiva a economia popular do STUR usufruindo de seus saberes em navegar, coletar, pescar, etc.

b)              O cenário mais preocupante encontrado nas pesquisas sobre os fluxos de embarcações do STUR em todas as cidades, foi a enorme quantidade de madeira transportada dos interiores para a cidade (Figura 5). Como o Instituto de Desenvolvimento Agrário do Amazonas (IDAM) confirmou, são pouco numerosas as iniciativas de Planos de Manejo municipais, e pelas várias pilhas de madeira de lei vistas nas beiras de rio das cidades, se deduz que essa atividade ilegal é uma das mais intensas. Mas grande parte dessa madeira cumpre uso social de extrema serventia na construção de moradias e embarcações.

c)               Conflitos entre STUR e STUF ocorrem em disputas territoriais entre pescadores e o capital mercantil. Colônias de pescadores tem realizado auxilio na formação de acordos de pesca junto ao IBAMA na implementação de defesas contra pesca predatória e industrial financiadas pelos frigoríficos do STUF. Pressionados ao norte pelas tensões e limitações da APA[viii] e a leste pela pressão de grupos de pescadores paraenses, os pescadores de Parintins são “empurrados” e impelidos a realizar percursos cada vez mais distantes em direção a oeste. Passam a ter obrigação de atingir produtividade elevada para custeio dos gastos feitos na cidade. Gelo, gasolina e alimentos (fluxos adjacentes fornecidos pelo capital mercantil na cidade), são gastos altos que exigem apropriação do excedente de trabalho. O pagamento insignificante pelo quilo na maioria das espécies de pescados também agudiza a tendência de parcos rendimentos monetários dos pescadores.

d)              Corroborando com constatações de estudos relativos à calha do rio Solimões no estado do Amazonas (Moraes y Schor 2010; Moraes 2008; 2014), percebe-se semelhança quanto à demanda de alimentos no mercado urbano que vem alterando cada vez mais itens da dieta regional, com marcante a presença de conserva, frango congelado, embutidos e outros produtos industrializados. A substituição paulatina dos fogões à lenha pelo uso de botijas é ainda tímida. A comercialização de ração também foi bastante notada, demonstrando prática da criação animal nas comunidades como fonte de proteína, principalmente o frango e suínos. A insuficiente produção de farinha no baixo Amazonas tem sido suprida pela importação do Pará (figuras 5 e 6).

e)               As cidades pequenas do entorno de Parintins caracterizam-se por seu caráter funcional mais local, atendendo sua região imediata com alcance espacial “mínimo” considerando a escala municipal, mas atingindo longínquas comunidades das bacias hidrográficas. No quadro urbano sub-regional, possuem centralidade baixa limitando-se a atender seus entornos distribuindo alimentos oriundos do complexo agroindustrial do centro-oeste e sudeste brasileiro e possuindo irrisória produção local de alimentos (figuras 5 e 6).

f)                Calhas de rios condicionam dinâmicas fluviais e ribeirinhas, centrais para formação da situação, onde os papeis na Divisão Territorial do Trabalho são estruturados também pelo tipo de circulação calhas de rios. Comunidades situadas nos altos cursos dos rios nas áreas municipais são mais “fechadas” e voltadas para mediações e mercados das sedes municipais, possuindo baixa complexidade de funções produtivas e comerciais, mas apresentando considerável atividade extrativista e de subsistência. Já as comunidades e distritos da rede urbana localizadas no rio principal e proximidades (rio Amazonas), são mais “abertas” e dinâmicas, recebendo fluxos da metrópole Manaus a oeste e da rede urbana paraense a leste (Figura 6).

g)              O regime fluvial, a fisiografia dos rios e a geomorfologia do sítio das cidades, necessitam ser entendidos como variáveis que condicionam ou limitam a navegação e atracação de embarcações, o que pode refletir em perdas e ganhos de centralidade e na forma como configuram os usos e disputas pelas margens fluviais, lagos e seus estoques pesqueiros. Associar a discussão do sítio (base física do plano) à situação (relações com a rede, fluxos e centralidade) requer entendimento de que as redes locais de sujeitos realizam disputas territoriais pelo controle das margens fluviais (privatizações das beiras de rio), inerentes ao processo de territorialização em que o capital mercantil tem sido preponderante. Proprietários de embarcações realizam diversas atividades e serviços laborais na cidade necessitando complementos de renda e de alimentos exercendo outras atividades nos interiores. Sobre estas, destacamos o extrativismo, a pecuária de pequena escala, agricultura, pesca, caça e a criação de animais.  Assentados em ocupações irregulares urbanas, também necessitam “absorver” complementos recursivos dos interiores: madeira para moradia popular, construção de barcos ou para pequena indústria moveleira; pescados; palha; piaçava; carne de caça ou quelônios, pequenas criações de gado, produtos da agricultura de subsistência e do extrativismo, etc (figuras 5 e 6).

 

Figura 5: Produtos que chegam a Barreirinha dos interiores.

Fonte: BARTOLI (2020b)

 

Figura 6 – Produtos que chegam a Urucará

Fonte: BARTOLI (2020a)

 

 

Essa caracterização laboral multifuncional é um dos aspectos centrais das territorialidades do STUR, sinalizando a capacidade adaptação dos sujeitos em criativos modos de obtenção de alimentos e subsistência, sendo um dos elementos mais promissores para repensar uma biorregião urbana funcional com melhor soberania alimentar.

 

Considerações Finais

 

Há urgência de reinterpretar o território não como um suporte passivo, mas fruto de longa trajetória coevolutiva e relacional (transescalar e multitemporal) – envolvendo diversas outros tipos de territorialidades e concepções de vida. A análise multidimensional permite entender que as reterritorializações são resultantes de processos diversos. Do contexto de expulsões de posseiros, grilagens de terras, invasões de terras indígenas e diversas outras formas de acumulação primitiva, há extração de excedentes também potencializadas pelas novas formas de dependência construídos a partir das cidades. Dialeticamente, a atratividade do milieu urbano para acesso às redes de ensino, saúde e mercados, tem formado novas energias em formas de resistências. A proposta analítica da biorregião enquanto componente do Patrimônio Territorial, pode evoluir no diálogo com o modelo STUR na auxiliando a temática da soberania alimentar e manejo de recursos apoiados em estratégias emancipatórias.

O ambiente urbano, a cidade, seus fixos e fluxos a partir de incontáveis subsistemas territoriais, passam a embasar “retornos a territórios” devido ao acelerado processo des-re-territorializante. Potencializados também pela urbanização, a fluidez, a maleabilidade e a flexibilidade (não nos termos pós-fordistas) oriundos da criatividade popular, são associados à sazonalidade e adaptações socionaturais carregadas de saberes e práticas arraigadas dos sujeitos do STUR. Forma-se uma situação sub-regional parintinense com forte circunscrição territorial, cuja constatação da existência de um milieu urbano-ribeirinho portador de enorme densidade de relações territoriais, vai de encontro com as teorias dominantes que interpretam as cidades amazônicas como portadoras de “baixo dinamismo”.

A análise de novas centralidades multidimensionais e dinâmicas escalares que incluem as territorialidades das famílias “urbano-ribeirinhas”, consideram desde suas relações umbilicais com interiores, aldeias comunidades e vilas até as beiras de rio e os múltiplos modais de moradias situadas em palafitas até as embarcações.

O equilíbrio entre estoques de biodiversidade e sua exploração pela demanda urbana deve ser central para proposições de políticas de desenvolvimento, pois tratam de setores da economia popular (STUR - cumprindo atributos de uma produção, circulação e mercados socialmente necessários[ix]) que poderiam abastecer os bairro populares e comunidades, e não reforçando a dependência atual gerada pelo domínio de empresas desde o agronegócio até frações locais do capital mercantil (STUF). Há preocupação quanto ao futuro dos estoques recursivos, salientando que essa manutenção de recursos para melhoria de valores de uso depende da mediação urbana. A análise reforça a importância do caráter mediador da cidade e das redes de sujeitos locais na produção de territórios e no controle e processamento de recursos atrelados à necessidade de construção de projetos coletivos. A ideia de biorregião é uma das dimensões que compõe o patrimônio territorial, e pode contribuir para repensar os papéis de cidades médias de responsabilidade territorial como Parintins e as cidades pequenas sob sua influência (BARTOLI, et all., 2019). Planejar infra estruturas socio-naturais alimentares e madeireiras regionais em favor das populações locais é tarefa urgente para se repensar o futuro da “floresta urbanizada”. 

 

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  Notas   



[i] O termo sub-região será utilizado correspondendo a microrregião de Planejamento do IBGE, cujas cidades pequenas de Nhamundá, Urucará, São Sebastião do Uatumã, Maués, Boa Vista do Ramos, e Barreirinha estão sobre influência de Parintins (cidade média de responsabilidade territorial).

[ii] Visamos contribuir com os debates relativos ao Projeto de pesquisa coordenado por Valdir Roque Dallabrida (Universidade Federal do Paraná - UFPR), intitulado O patrimônio Territorial como referência para o desenvolvimento de territórios e regiões (CNPQ-UFPR), que envolve 18 universidades (Brasil, Portugal, Espanha e Colômbia) e 38 pesquisadores.

[iii] No canal do YouTube do Núcleo de Estudos Territoriais da Amazônia (NETAM) o documentário Vivendo em barcos apresenta resultados de pesquisas: https://www.youtube.com/watch?v=Vj6Pss9UwRs

[iv] PRIN: Progetti di Rilevanti Interessi Nazionali; MIUR: Ministero dell’Istruzione, dell’Università e della Ricerca.

[v] Há variada pulverização dos investimentos do chamado capital mercantil, que em constante metamorfose se adapta a diversas circunstâncias e cenários. No caso de Parintins, tais esferas também se aproveitam do boom gerado pelo sucesso do Festival Folclórico, se inserindo em atividades hoteleiras, redes de supermercados, agências de turismo, empresas de locação de equipamentos de som e iluminação, etc.

[vi] Realizados em 2019 fazendo parte do Projeto Rede urbana, Tipologia de Cidades e Sistemas territoriais Urbano-ribeirinhos no Baixo Amazonas, fazendo parte de bolsa produtividade concedida pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

[vii] https://www.gov.br/pt-br/noticias/justica-e-seguranca/2020/12/policia-federal-faz-apreensao-historica-de-madeira

[viii] A APA Nhamundá possui enorme complexidade. Com 33 comunidades/localidades abrigam 1.400 famílias, que juntas totalizam cerca de 7.000 pessoas. Isso desencadeia disputas e tensões em variadas frentes pela gestão dos recursos. Embora a APA possua recursos naturais ainda bastante conservados, percebe-se que algumas atividades como a pesca, sofre intensa busca das espécies e consequentemente a diminuição gradativa do estoque natural (SEMA, 2015).

[ix] Milton Santos e Maria Laura Silveira (2001)desenvolvem essa ideia do socialmente necessário ao analisar as produções alienígenas e alienadas em vastas porções do território nacional.