Eutopia.
Revista de Desarrollo Económico Territorial
N.° 21, junio
2022, pp. 30-51
ISSN 13905708/e-ISSN 26028239
DOI: 10.17141/eutopia.21.2022.5348
Sistemas territoriais na Amazônia e o papel das
cidades para o desenvolvimento regional: a biorregião
de Parintins (am)
Territorial
systems in the Amazon and the role of cities for regional development: the
bioregion of Parintins (am)
Estevan Bartoli.
Universidade do Estado do Amazonas, ebartoli11@gmail.com
, https://orcid.org/0000-0003-1238-3187
Recibido: 23/02/2022 - Aceptado: 18/05/2022
Publicado: 30/06/2022
Reterritorialização
de populações diversas situadas hoje nas cidades da Amazônia (principalmente em
extensas periferias), consolidam uma densa e diversificada economia popular. Essa
economia urbana com intensa mobilidade regional é interpretada enquanto Sistema
Territorial Urbano-Ribeirinho (STUR), que possui duplo papel na necessidade de
complementar a economia urbana enquanto exerce ligação entre os pontos de
extração de recursos regionais para a cidade. A partir do modelo STUR,
objetiva-se analisar atividades de extração de recursos regionais, averiguando
quais espécies vem sofrendo maior exploração e consequentemente indícios de
declínio da população e escassez no mercado local. Pretende-se ainda contribuir na formação de
metodologias para repensar o caráter relacional e processual em estudos sobre
cidades na Amazônia. Demonstra-se que há reduzida capacidade de processamento
de tais recursos por atividades urbanas, com irrisória agregação de “valor” aos
produtos, sinalizando os perigos da continuidade de exploração de determinadas
espécies. Constata-se que a dinâmica do STUR propicia usos socialmente
necessários de recursos alimentares ou madeireiros elementares na manutenção da
vida entre cidades e interiores.
Palavras
chave: Sistemas
territoriais, Cidades, Biorregião
Reterritorialization
of diverse populations located today in Amazon cities (mainly in extensive
outskirts), consolidate a dense and diversified popular economy. This urban
economy with intense regional mobility is as the Urban-Ribeirinho
Territorial System (STUR), which has a double role in the need to complement
the urban economy while exerting a connection between the points of extraction
of regional resources for the city.
As
from the STUR model, the objective is to analyze regional resource extraction
activities, investigating which species have been undergoing greater
exploitation and consequently evidence of population decline and scarcity in
the local market. It is also intended to
contribute to the formation of methodologies to rethink the relational and
procedural character in studies on cities in the Amazon. It is intended to
demonstrate that there is reduced processing capacity of such resources by
urban activities, with derisive addition of value to the products, signaling
the dangers of continued exploration of certain species. It appears that the dynamics of
STUR provides socially necessary uses of resources destined for food or timber
are elementary items in the maintenance of life between cities and interiors.
Key
words: Territorial
System, Cities, Bioregion
Com o intenso processo de
urbanização na Amazônia associado ao crescimento demográfico e espacial das
cidades, tem se questionado os papéis dos núcleos urbanos no ordenamento
territorial, e os consequentes impactos no uso de recursos regionais através da
demanda urbana e as alterações nos hábitos alimentares. A reterritorialização
de populações diversas situadas hoje nas cidades (principalmente em extensas
periferias), consolida uma densa e diversificada economia popular. Essa
economia com intensa mobilidade na sub-região[i]
de Parintins é interpretada em Bartoli (2017; 2018; 2019) enquanto Sistema
Territorial Urbano-Ribeirinho (STUR), que possui duplo papel na necessidade de
complementar a economia urbana enquanto exerce ligação entre os pontos de
extração de recursos regionais para a cidade. Ao passo que abastece e forma a
economia popular (feiras, comércios variados, pequenas indústrias, etc.),
também abastece grupos mercantis urbanos dominantes (entrepostos pesqueiros,
madeireiras, comércios locais).
O objetivo do texto consiste em apresentar
como o modelo de análise STUR tem interpretado a capacidade que as cidades da
sub-região de Parintins – AM (Baixo Amazonas), tem em realizar extração de
recursos regionais e as mediações das cidades. Averigua quais espécies vem
sofrendo maior exploração e consequentemente indícios de declínio da população
e escassez no mercado local, prejudicando a soberania alimentar. O STUR é relativo à análise das redes locais
de sujeitos com enfoque nas variadas manifestações da economia popular e dos
setores dominantes pertencentes ao capital mercantil e suas variadas relações
escalares. Apresenta-se elementos que evidenciam a existência de uma biorregião compondo uma das dimensões da noção de patrimônio
territorial[ii].
Os
setores comerciais dominantes (capital mercantil) da sub-região em voga,
receptam alimentos industrializados e/ou oriundos do agronegócio brasileiro
através de redes longas vindas de localidades nacionais diversas,
redistribuindo às cidades. O STUR transporta para interiores tais produtos e
retornam com produtos para autoconsumo vendas em feiras de produtos regionais
(extrativos e/ou pescado) ou da agricultura. Formam em bairros populares densas
redes de complementação alimentar constituídas por relações de parentesco,
vizinhança e amigos (redes de “agrados”).
Demonstra-se ainda que há reduzida capacidade de
processamento de tais recursos por atividades urbanas, com irrisória agregação
de valor aos produtos e que muitos deles como o caso do pescado poderiam ser
melhor absorvidos pelas camadas populares. Mas demonstra-se que existem usos
socialmente necessários de recursos que são itens elementares na manutenção da
vida entre cidades e interiores.
Pretende-se contribuir na formação de metodologias para
repensar o caráter relacional e processual em estudos sobre cidades na
Amazônia. A análise empírica ocorre dando sequência à proposta metodológica
presente em Bartoli (2017, 2018a, 2018b), onde “calibramos” os procedimentos
metodológicos e dimensões basilares do modelo STUR seguindo as seguintes
etapas: a) análise da influência do relevo sub-regional como condicionador das
relações e fluxos dos principais nódulos urbanos; b) levantamento de dados
secundários relativos à densidade de ocupação do território em instituições
diversas (secretarias municipais, institutos governamentais, sindicatos,
colônias de pescadores, etc.); c) realização de trabalhos de campo com objetivo
de identificar e descrever as principais práticas espaciais das redes de
sujeitos locais. d) aplicação de formulários semi-estruturados
a donos de embarcações e entrevistas a empresários, lideranças do setor
pesqueiro, sindicatos, associações de produtores rurais e de comerciantes,
visando entendimento de como são tecidas as redes de interação entre STUR,
capital mercantil e cidades/interiores;
e) análise da expansão urbana e as consequências na configuração da morfologia
urbana; f) uso de imagens de satélite e Drone para identificação de elementos
na análise morfológica; g) elaboração de mapas, tabelas e quadros nos
auxiliando na descrição dos padrões espaciais inerentes da interação STUR/
capital mercantil. Elenca-se critérios para averiguação de coletivos
organizados, visando caracterização desses subsistemas que articulam espaços urbanos
aos interiores afetando o ordenamento territorial, levando à busca da análise
da qualidade das relações territoriais.
Como
resultados, demonstra-se
que as economias urbanas incompletas possuem padrões de circulação, uso de
recursos e consumo que evidenciam centralidades e polarizações entre as cidades
e comunidades do entorno. Forças centrípetas e centrífugas ocorrem
influenciadas por setores do capital mercantil urbano, implicando intensa
distribuição de alimentos industrializados para os interiores e denotando a
interpenetração e complementaridade com o Sistema-Territorial
Urbano-Ribeirinho.
Abordagem territorial: desafios para pesquisas e
a biorregião urbana
Os desafios e avanços no tipo de análise proposto no
modelo STUR, pela amplitude de critérios e dimensões envolvidos nas complexas
territorialidades analisadas, requer retomar aspectos coevolutivos
dos sistemas territoriais que compõem o território, sendo necessário
aprofundamentos de alguns aspectos em pesquisas futuras.
Primeiramente,
considerar que influência
humana interferindo na evolução da floresta resultou no redesenho da natureza
pela intervenção da cultura, tornando-a soberana em relação à manutenção
alimentar de sua população como foi outrora (Clement;
Junqueira, 1998).
O violento processo de invasão colonial posterior ao século XVI introduziu
mudanças nas lógicas espaciais às populações autóctones através da
escravização, do etnocídio e da destruição de
vínculos territoriais. A desterritorialização e rompimento da trajetória humana
coevolutiva a partir da aceleração do processo
urbano, induziu modificações abruptas da configuração territorial, alcançando
modificações em dinâmicas econômicas capitalistas incapazes de suprir o
abastecimento alimentar até o século XIX. As permanências, quando tratamos do
modelo STUR, estão associadas às longas e constantes trajetórias
realizadas por transporte fluvial de setores populares, cultura herdada dos
deslocamentos indígenas, mas principalmente de ciclos econômicos passados
(sistema de aviamento principalmente), através do uso de lentas embarcações que
fortaleceram historicamente o capital mercantil urbano: em troca de produtos
variados e principalmente da borracha, a itens alimentares eram introduzidos de
fora pelos regatões e a produção de alimentos proibida nos seringais. Tais comerciantes chamados de regatões eram muito presentes desde o
ciclo da borracha no final do século XIX, realizando o intercâmbio entre áreas
extrativas e as vilas. As funções estritamente atreladas ao comércio que exerciam
os regatões são encontradas atualmente no Baixo Amazonas a partir de variada
tipologia de embarcações. Análise do uso das embarcações nos fornece boas
indicações das territorialidades na relação STUR/STUF, tanto para extrativismo,
pesca, produção agrícola, etc., como cumprindo função de moradia[iii].
Outro aspecto que merece atenção, está no entendimento
de que cidades também são sistemas abertos vinculados a aspectos coevolutivos junto ao sistema mais amplo (formando o milieu urbano),
sendo passíveis de trocas de energia, informação e matéria. Autores como Dematteis (2005; 2007; 2008) e Magnaghi
(2010a, 2010b), ressaltam valorização “genético-evolutiva” do território local
cuja variedade de opções de recursos são elementares para o desenvolvimento
territorial. A ideia de que existem esferas evolutivas coexistindo no
desenvolvimento das sociedades (Harvey 2011) pode ser complementada por
constatações de que as dinâmicas sub-regionais possuem um substrato material e
cultural herdado (sedimento territorial) a partir das quais surgem formas
híbridas de arranjos territoriais.
Portanto, a análise do conjunto de práticas
espaciais e a capacidade de abertura ou fechamento operacional dos sistemas
evolutivos se faz
necessária para considerar diversas modalidades de estratégias
que redes de sujeitos constroem como resistências, o que remete à considerar a
produção alimentar. Variam pela intensidade de relações com o espaço
intraurbano ou rural, ocorrendo relações multiescalares
e níveis de submissão aos sistemas dominantes.
Em Bartoli (2017) demonstramos a multidimensionalidade
presente desses retornos a territórios de redes de sujeitos como
indígenas, pescadores, extrativistas e produtores de embarcações regionais.
Tais “retornos” foram diferenciados pela maneira com que os grupos formularam
projetos em coletivos organizados, alterando o modo como articularam
territorialidades reordenando territórios a partir da cidade de Parintins. O “retorno ao
território” trata-se da capacidade de grupos que ao se rearticular no ambiente
urbano (usando as possibilidades que a cidade oferece), criando estratégias de
sobrevivência e (re)construindo territorialidades
ativas e manutenção (ou retomada) de vínculos territoriais.
De acordo com a capacidade de resistência, politização
e autonomia dos sujeitos, pode ocorrer uma adaptação ou não das possibilidades
de interpretação dessas “aberturas” e “novidades” como recurso (Machado 2003,
2005). Justamente no quesito relativo à produção de alimentos esse item possui
um cenário preocupante. Há insuficiência na produção de alimentos e baixo
aproveitamento das possibilidades locais como as que vão
desde o manejo de caça e peixes, até a produção de Plantas Alimentícias Não
Convencionais – PANC (Kinupp y Lorenz 2014).
Como demonstramos a seguir, a abertura da rede urbana sub-regional de
Parintins, tem propiciado enorme perda de soberania alimentar pela concorrência
de produtos vindos de fora.
Ressalta-se a importância da análise de aspectos mais funcionais dos circuitos
relacionais entre os espaços rurais e urbanos, que formam (des)continuidades
passíveis de serem cartografadas. A circulação necessária dos sujeitos do STUR
contrasta com formas de circulação alienadas no interior da relação entre
economia popular e setores do capital mercantil. Os mecanismos de
auto-organização atuam sobre uma boa base de conhecimento acerca das
complexidades locais, podem reforçar casos positivos de causalidade circular
(Bettencourt 2015), evitando tanto os custos coletivos da cidade dispersa (Camagni 2007), como os longos deslocamentos
cidade-interiores que reforçam a dependência aos mercados locais.
Como veremos adiante na apresentação dos dados e resultados,
interpretada como um espaço geográfico relativizado que se molda em função das
técnicas, das estruturas econômicas e sociais e dos sistemas de relações
(Damiani 2006), a situação condiciona o milieu urbano, mediador
principal por conter condições para a ação. A situação dos
diversos subsistemas compondo a dinâmica cidade-território-região, delineia condições de contexto cujas diversas
dinâmicas sociais são efetivadas por territorialidades. A Interpretação da
cidade como milieu afetando o ordenamento territorial,
requer tanto entendimento da materialidade e dos aspectos culturais que os
sistemas territoriais configuram, quanto a inclusão da relação com sítio,
geomorfologia e morfologia urbana.
Se faz necessária análise das redes de natureza e temporalidade diversas
que se justapõem. É o processo sazonal de
cheia/enchente e da vazante/seca das bacias hidrográficas que determina os
fluxos de transporte, a produção de várzea, o extrativismo, a caça e o custo
de vida nas cidades (Moraes y Schor 2010 a/b). Exemplo dos estudos de
Moraes (2012, 2014) sobre a relação entre o mercado de bagres e a rede urbana,
constatou que a há uma articulação local – global cujas cidades entre Tefé e
Tabatinga não se submetem a hierarquia da rede urbana do país. Salienta que na
enchente há aumento de preço da cesta básica e do pescado devido à escassez,
levando a população a alternativas alimentares de baixo custo que são os
enlatados, ovos de galinha e frango congelado que, oriundos de Manaus,
intensificam os fluxos de transporte nesse período.
Por fim, é latente
desvendar lógicas de “geografias do atraso” e manutenção de poder
relacionada às frações arcaicas do capital mercantil (Cano 2010, 2011) e
existências de redes ilícitas (Souza 2009). Essenciais para
entender a ocupação (predatória ou não) das vastas porções do território que
estão sobre influencia e comando das cidades (Brandão y Cano 2006).
Frente a essa listagem
de desafios para análise de situações amazônicas, entendemos que redes de
sujeitos locais realizam processamento e intercâmbio de recursos regionais,
regulando fluxos de matéria, energia e informação, onde as cidades,
interpretadas como nódulos mediadores de sistemas territoriais são ambientes
complexos que propiciam “ajustes” (reterritorializações)
frente às oscilações externas e crises a que foram submetidas durante ciclos
econômicos regionais (Bartoli 2017a, 2017b). Os papeis e funções das cidades do Baixo Amazonas
foram sendo afetados pelo processo acelerado de crescimento urbano e êxodo
rural. Vínculos territoriais foram alterados, rompidos e, em muitos casos,
recompostos pela maneira como sujeitos se articulam na cidade.
Bartoli e Sposito (2016)
sintetizam em fluxograma (Figura 1) elementos sobre a interação entre a cidade
e escalas diversas que influem na composição do milieu, cada vez mais afetado pelo processo urbano na Amazônia.
Figura 1 – Milieu urbano e escalas escalares
interativas
Fonte: Bartoli e Sposito (2016)
Nesse contexto, o conceito de biorregião busca
renovar as bases das “tradicionais regiões” naturais, para enfim, definir a biorregião como amálgama de elementos naturais e sociais
(Martins 2017). A biorregião pode ser ligada também às representações que os
sujeitos têm sobre ela e sobre as formas de vida que nela se expressam, como
fatores indissociáveis (Aberley 1999). A
ideia de biorregião urbana aplicada ao planejamento
territorial possui intenso debate em
estudos sobre regiões da Itália[iv],
que procuram valorizar a tutela e valorização ativa do patrimônio territorial e
paisagística, visando contribuições ao planejamento para desenhar cenários
estratégicos de transformação ativa do território (APAT 2007; Bernetti y Chirisi 2007;
Bologna 2010; Fanfani 2010). Os autores italianos
problematizam a capacidade de modelos de ocupação, propondo regras reprodutivas
e produtivas visando favorecer o desenvolvimento reterritorializante,
respeitando os limites dos ecossistemas locais. Um dos expoentes mais
importantes da concepção de biorregião, Magnaghi (2020a, 2010b) ressalta a construção de novas
centralidades regionais emergentes do reconhecimento da pluralidade e
peculiaridade dos sistemas territoriais e urbanos, assim como a qualidade
ambiental e paisagística do ambiente ocupado.
Num
contexto histórico-geográfico muito diferenciado, a análise empírica da biorregião de Parintins visa sistematização de dados sobre
as atuais redes de sujeitos que utilizam recursos presentes no território,
considerando num sentido geral: a) a densidade das relações territoriais locais
e seus respectivos usos de recursos considerando os conflitos e tensões; b) o
papel das cidades no processamento, consumo e mediação das práticas espaciais
quanto aos usos do território; c) as territorialidades populares existentes a
serem potencializadas a partir da reconstrução de paisagens funcionais
interconectadas ao patrimônio ambiental herdado (sociocultural e evolutivo), e
num sentido mais amplo com o patrimônio territorial multidimensional (Bartoli
2015 a, 2015 b).
O
modelo sistema territorial urbano-ribeirinho
O
STUR é um modelo analítico que propõe detalhar o comportamento espacial dos
circuitos informais da economia popular inseridos em contexto específico.
Considerações sobre dinâmicas transescalares são
feitas para melhor detalhamento das complexas relações existentes com a rede
urbana regional com forte influência da metrópole Manaus em disputa com a rede
urbana paraense, e escalas nacionais e globais.
A partir de autores da
abordagem territorial, visa-se contribuir na formação de metodologias para
repensar o caráter relacional e processual em estudos sobre cidades na Amazônia
e suas áreas de entorno. Questiona-se o papel das práticas espaciais de redes
de sujeitos variados, cuja análise empírica ocorre a partir de grupos ou
coletivos organizados: Colônia de Pescadores, Associação de Produtores rurais,
moveleiros, indígenas, produtores rurais, cooperativas, etc. Para isso se faz
necessário descrever aspectos que compõe a estrutura dos sistemas urbanos em
questão e as relações com recursos locais e seus usos pelas redes de sujeitos. Nesse contexto a abordagem territorial é entendida como
(i)material, histórica, relacional e multiescalar do
desenvolvimento e do território, da desterritorialização e da reterritorialização, reconhecendo descontinuidades,
desigualdades, ritmos, diferenças, identidades, temporalidades e
territorialidades (Saquet 2007, 2011).
Critérios
para averiguação de coletivos organizados e demais grupos são elencados,
visando caracterização desses subsistemas que articulam espaços urbanos aos
rurais afetando o ordenamento territorial, constituindo sistemas territoriais,
levando à busca da análise da qualidade das relações territoriais. Os critérios
de valoração e análise empíricas realizado em Bartoli (2017) foram: a) a
relação histórico-cultural e relações com o sítio e situação da cidade; b)
relação com os recursos locais, capacidade de processamento e
“sustentabilidade”; c) relações com o milieu; d) abrangência das áreas de influência de atividades
econômicas; e) capacidade de ativação do patrimônio territorial e formação de
“trabalho novo”; f) autonomia relativa frente às redes locais de poder e
capacidade de criar relações em escalas variadas; g) coesão do grupo e
recorrência/intensidade das ações, estabilidade da agregação e relações
institucionais.
Dinamizado por populações que se estabelecem nas
cidades, moldando espaços intraurbanos e realizando intensos deslocamentos com
as áreas de entorno, o papel mediador que o STUR abrange aparece em cinco
vertentes apresentadas em avançoes de estudos
posteriores (Bartoli 2018a; 2018b): i) zonal e topológico: conectando a cidade
por meio de redes diversas a localidades do entorno sub-regional através da
navegação fluvial e ribeirinha; ii) produção e
configuração do espaço urbano em bairros oriundos de ocupações irregulares e de
fragmentos do espaço intraurbano, constituindo fixos úteis para a navegação
(beiras de rios populares, por exemplo); iii)
formação de circuitos econômicos duais e complementares: sendo dinamizado
principalmente pela economia popular informal mas em interação constante com as
esferas de valorização do capital mercantil dominantes na cidade (saltos
escalares ocorrem em relações diversas que ultrapassam a sub-região); iv) organizacional e institucional: outros tipos de
coalizão de sujeitos ganham relevância (cooperativas, associações, colônias de
pescadores, etc.), mediando ações que se desdobram em práticas de governança
sobre o território; v) simbólico-cultural: traços da cultura cabocla e
ribeirinha, indígena ou de conhecimentos populares tradicionais são absorvidos,
hibridizados e ressignificados pela inserção ao processo urbano.
Devido ao desemprego urbano e formação de extensas
periferias em bairros oriundos de ocupações irregulares, o STUR cumpre
importante papel de complementação da base alimentar popular. Os sujeitos
mantém vínculos territoriais através práticas culturais (pescar, coletar,
plantar), abastecendo feiras, propiciando subsistência e formando redes de
trocas de alimentos entre parentes e amigos, fato constatado nos estudos de Schwade (2016).
A figura 2 sintetiza a interação e composição entre os
sistemas Territoriais, num modelo geral construído ao longo dos avanços das
constatações empíricas posteriores, cujas características variam a partir da situação
de cada cidade, composição dos subsistemas e pela variedade de estratégias e
territorialidades que sujeitos constroem. As circunferências pontilhadas
(permeabilidades e interpenetrações) representam a abrangência dos sistemas e
interações entre o STUR e o sistemas dominante pertencente ao capital mercantil
(Sistema Territorial Urbano-Fluvial - STUF), atingindo sistemas territoriais
ribeirinhos e indígenas com pouca interação com a cidade. Pela aceleração do
processo urbano, cada vez mais o STUR e o STUF se complementam e interpenetram
com intensificação da demanda por recursos naturais na cidade, e propagação do
modo de vida e consumo urbano.
Figura 2: interações
entre sistemas territoriais mediadores da influência urbana.
Legenda:
A - Tensões
e conflitos: produção do espaço urbano (ênfase nas beiras de rio).
B - Hibridização: elaboração
de soluções criativas e adaptações técnicas em instrumentos de trabalho, moradias, tipos de embarcações, circuitos de
circulação fluvial e outras formas e práticas espaciais.
C – Saltos
escalares diversos associado tanto ao capital mercantil, como da economia
popular na formação de redes urbanas. D
- Extração de recursos regionais (garimpos, madeira, até mesmo areia e seixo
para construção civil) sem processamento local, mantendo sujeitos populares que
abastecem os fluxos em grau elevado de territorialidade passiva.
Fonte: BARTOLI (2021) adaptado.
Composto por frações do capital mercantil[v], o Sistema
Territorial Urbano-Fluvial (STUF) cada vez mais se sobrepõe, explorando e absorvendo
dinâmicas ribeirinhas, se aproveitando da enorme capacidade de deslocamentos
dos sujeitos que compõem o STUR. Usamos o termo fluvial considerando que, para os sujeitos que impulsionam esse
sistema, os rios são usados primordialmente para circulação de mercadorias. Não há intencionalidade de manutenção de
práticas cotidianas que tem no rio aspecto simbólico, cultural/identitário,
lúdico ou para subsistência (ribeirinho). As práticas espaciais do STUF
resumidamente: i) causam maior rebatimento espacial, pois possuem maior poder
de organizar espaços partindo da posse de lotes e glebas, materializados
principalmente nos portos, o que confere maior extração de renda (Bartoli 2018b
2020 d; Marques y Bartoli 2020); ii)
Incentivam circuitos econômicos geradores de maior impacto ambiental em
extensas áreas a partir de ações como extração de madeira, areia, seixo e
criação de gado, búfalos, pesca comercial e industrial, etc.; iii) uso de embarcações grandes de ferro e madeira,
conferindo vantagens competitivas ao obter produtos de Manaus e do Pará, o que
os tornam os maiores distribuidores de alguns produtos na sub-região, como
materiais de construção, combustíveis e alimentos industrializados (Silva y
Bartoli 2019). O STUF passa a ordenar a divisão territorial do trabalho a seu
favor, afetando os demais sistemas ao impor uma lógica mais funcional, ditando
preços e controlando o mercado urbano de absorção dos produtos e mercadorias
advindos de florestas, rios e da produção rural. A presença dessa fração do capital
mercantil varia de acordo com o papel que a cidade cumpre na rede, levando em
conta sua polarização e centralidade.
As duas dinâmicas (fluviais e ribeirinhas) não se
excluem, mas se complementam e se sobrepõem na medida que os produtos adentram
na rede urbana amazonense tendo Parintins (AM) como primeiro porto de
distribuição sub-regional. Exemplos constatado em nossos trajetos de Parintins
(AM) aos municípios do entorno para trabalho de campo[vi], foram a enorme quantidade de alimentos importados de
outros estados e países que abastecem o Amazonas, demostrando a fragilidade
relativa à soberania alimentar que tem impactado em mudanças nos hábitos
alimentares e na composição da cesta básica regional (Moraes 2008 2012 2014).
Após percurso de embarcações de ferro vindas do Pará,
os produtos são carregados em embarcações de madeira menores até as cidades
menores. O porão e o piso térreo são geralmente usados para cargas de
mercadorias, veículos, maquinários e combustíveis. O piso superior transporta
viajantes acomodados em redes que se deslocam a Parintins visando acessar
serviços de saúde, ensino e diversos outras polarizações. A figura 3 apresenta
etapa importante da formação da rede urbana, pois na embarcação de madeira
fabricada por artesãos locais em estaleiros tradicionais (Bartoli 2019), são
transportados produtos cuja economia local amazonense possui dificuldades de
disputa concorrencial. A melhoria das condições de tráfego da rodovia BR-163
ligando Cuiabá (MT) a Santarém (PA) após 2010, tem propiciado penetração de
maior quantidade de frutas, verduras, conservados, embutidos, ovos e produtos
agroindustriais variados na sub-região. Estes produtos chegam a Parintins via
fluvial, oriundos do porto de Santarém. Isso ocasionou competição e desestímulo
dos produtores rurais locais, aumentando a importação de frutas e legumes
(Bartoli 2020). A importação de ovos vindos de Goiás e Mato Grosso tem sido
igualmente crescente. Chama atenção itens de distâncias exorbitantes, como
peras vindas da Argentina, uvas oriundas do Vale do rio São Francisco, abacates
de Minas Gerais e maçãs de Santa Catarina (figura 2).
Fonte:
Trabalho de campo (10/2018)
No geral, dinâmicas econômicas estagnadas na sub-região
refletem baixa variedade de atividades produtivas das cidades, mesmo em
Parintins considerada cidade média de responsabilidade territorial (Bartoli et
al 2020). A produção agropecuária deste município, não é suficiente para o
abastecimento local. Em decorrência a importação de alimentos especialmente de
produtos oriundos da agroindústria brasileira, como frango congelado,
calabresa, e outros produtos de importância para a cesta básica familiar como
arroz, açúcar e feijão, é de suma importância (Moraes 2008).
Segundo o relatório de
Trânsito Interestadual e Intermunicipal de Vegetais e seus Produtos e
Subprodutos (2018), a origem dos produtos agrícolas importados pelo município
de Parintins corresponde a 96,05 % oriundos de Santarém, 3,65 % de São Paulo e
0,3 % de Belém (figura 4).
Figura
4: Volume (kg) e valor da importação (R$) de frutas pelo município de
Parintins em 2015
Fonte:
ADAF/Parintins. Relatório de Trânsito Interestadual e Intermunicipal de
Vegetais e seus Produtos e Subprodutos. 2018.
Essa crescente
importação de alimentos com formação de enorme déficit na balança comercial do
Amazonas (SEDECTI 2020), está associada à escassa presença de setores
produtivos na maioria das cidades do Amazonas, relegando seus papéis a função
de localidades de baixa complexidade na composição da divisão social e territorial
do trabalho, mas que revela alta complexidade quando consideramos a relação
STUR/STUF.
O modelo stur aplicado ao
baixo Amazonas: resultados e discussões.
Em Bartoli (2017) analisamos subsistemas que compõem a
economia de Parintins. Pesca e extração madeireira tem sido duas das maiores
atividades urbanas e necessitam ser repensadas para evitar a super exploração
em curso e suprir as necessidades das populações locais, embasando a noção de biorregião proposta. Há domínio do mercado por três empresas
receptoras de pescado pertencentes ao STUF na cidade que exportam para todo o
país. Uma delas que recebe parte do pescado é a Só Peixe (Tabela 1). Aproveitando a desorganização do setor, têm
enorme lucro na compra de espécies variadas e nos chamados peixes de pele lisa.
Com a rejeição dos peixes de pele lisa pelo mercado local, formam-se preços
baixos na venda para a empresa.
Tabela 1: Entrada de pescados de abril a dezembro de 2016 na empresa Só Peixe.
Espécie |
Quilos |
Espécie |
Quilos |
Espécie |
Quilos |
Dourada |
46.400 |
Babão |
7.403 |
Sardinha |
301 |
Surubim |
144.540 |
Pirapitin-ga |
352 |
Traíra |
1.913 |
Pirarara |
56.424 |
Curimatã |
3.207 |
Orana |
2.319 |
Filhote |
13.781 |
Pacú |
19.223 |
Apapá |
98 |
Mapará |
100.118 |
Aruanã |
45.248 |
Cara
de gato |
162 |
Furinha |
43.815 |
Tucunaré |
4.600 |
Jaraqui |
4.180 |
Jaú |
8.291 |
Bocudo/ mandu-be |
22.313 |
Aracú |
29.888 |
Piaba |
58.759 |
Acara-açu |
5.014 |
Arraia |
322 |
Pescada |
20.608 |
Bacú |
1.096 |
Piranam-bu |
10.087 |
Barbado |
1.946 |
Matrinxã |
1.282 |
|
|
Fonte: Bartoli, 2017.
Não há por parte de pescadores locais ou da Colônia
(Z-17) e Sindicato na cidade qualquer tipo de beneficiamento do pescado.
Tampouco existem melhorias de infraestrutura para recepção e venda, como
terminais pesqueiros ou feiras de cooperativas que diminuam o preço final. Isso
encarece os preços nas feiras de bairros e diminui o consumo de pescado por
populares. Os pescadores ainda são submetidos a abastecer o comércio urbano de
forma precária com sucateamento dos órgãos fiscalizadores. O declínio do pescado
nos lagos e rios do baixo Amazonas fazem com que empresas financiem
deslocamentos cada vez mais longínquos, acarretando maior exploração de
trabalhadores da pesca pertencentes ao STUR (Bartoli 2019b).
Sobre o consumo de madeira, os dados
apontam que grande parte é advinda de exploração ilegal, sem plano de manejo ou
certificação. A Associação dos Moveleiros de Parintins (AMOPIN) possui 48
unidades produtivas, gerando grande preocupação por parte dos produtores que
percebem a fragilidade do setor quanto a diminuição de estoques na sub-região.
A pressão dos órgãos de fiscalização atualmente sucateados, desmontados e
insuficientes para atuação local, é simultânea à ausência de planos de manejo e
certificação, que coloca em xeque a exploração. O
cenário é preocupante considerando a fragilidade dos mecanismos de controle,
somado às áreas cada vez mais distantes onde ocorre a extração com presença de
conflitos severos. Basta lembrar a maior apreensão ilegal da história em 2020
ocorrida num dos rios que entrecortam a sub-região[vii].
Tais fatores impelem fragilidade ao setor e isso passa a impactar,
negativamente, no tipo de uso do território. Confere-se nesse consumo a demanda
para extração ilegal sobrecarregando a capacidade de reposição natural das
espécies. Já há uso de placas de MDF quando ocorre falta de madeira no mercado
local.
É
notável, em diversas atividades com uso de madeira de Parintins a inexistência
de certificados de origem, principalmente o Documento de Origem Florestal
(DOF). Isso ocorre mesmo tendo na cidade o Instituto de Desenvolvimento
Agropecuário e Florestal Sustentável do Amazonas (IDAM) como mediador para
obtenção desse documento junto ao Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas
(IPAAM). A análise reforça a importância do caráter mediador da cidade e das
redes de sujeitos locais na produção de territórios e no controle e
processamento de recursos.
Sobre a mediação urbana na produção de e
comercialização de guaraná indígena, a experiência recente do desenvolvimento
do consórcio indígena em Parintins (Nusoken)
aparece como frutífera manifestação de como a cidade pode engendrar uma miríade
de projetos na constituição de territórios. Um território zonal vinculado a
condições materiais e naturais em altos cursos de rios na Terra Indígena (TI),
conectado ao nó relacional (a cidade enquanto milieu) a partir de redes
sociais, políticas e institucionais, possibilita saltos de escalas para atingir
mercados externos na exportação de produtos diversos. O principal item, waraná (guaraná -
contrastando com ancestrais práticas ritualísticas ou alimentares), é agora
produto para o mercado e acompanha a luta e tentativa da etnia em reinventar
seu contexto, se aproveitando das vantagens que a cidade propicia.
Amplas áreas conectadas a partir dos rios mantêm as
práticas espaciais para sustento do grupo e uso de recursos regionais mediados
pela esfera urbana. Constata-se que há criação de relações escalares externas
mais amplas e diversas pelo consórcio e maior variedade de projetos internos
ligados à educação indígena, agroecologia, soberania alimentar, entre outros.
Tecem, com a cidade, evolução organizacional e coesão do grupo. Essa evolução
das relações territoriais propiciou a reconfiguração de mediações históricas,
antes mais dependentes de atravessadores locais e da igreja católica. O rumo
tomado foi no sentido da conquista de certa autonomia relativa. Hoje o
consórcio não abastece de maneira submissa o circuito mercantil urbano com
fornecimento de produtos a baixo custo (Bartoli 2015 b).
Mas essa territorialização da etnia está também
envolta em contradições, onde o guaraná é objeto de lutas de apropriação por
parte de distintos coletivos. Diversos atores se enfrentam, se excluem e/ou se
coordenam para defender a especialização do produto na busca de indicadores
geográficos de origem, que tem sido central em todo o processo de
territorialização (Pinton 2016).
O CPSM tem maior grau de mobilização, aprendizado
político e links com ambientes
externos (pesquisadores, redes de comércio alternativo, entre outros). Em
função disso, a territorialidade do grupo veio se transmutando nos últimos anos
para a multiplicação de nexos territoriais a partir da migração para a cidade.
Isso formou um território múltiplo de várias dimensões e em diferentes frentes
de reconstrução ou “reinvenção” da etnia que os próprios membros do grupo
admitem estar passando. Descrevemos as etapas da evolução territorial do
consórcio que tem a cidade como nó articulador de atividades.
Em 2019 ampliamos a área de estudo a partir do projeto
Rede urbana, Tipologia de Cidades e Sistemas territoriais Urbano-ribeirinhos
no Baixo Amazonas. Os resultados foram apresentados em diversas publicações
(Bartoli 2019a; 2019b; 2020a; 2020b; 2020c; 2021a; 2021b) que em síntese
revelaram algumas características comuns entre os municípios estudados:
a)
Duas “forças” em direções de vetores partindo das cidades para
interiores e no sentido inverso, dialeticamente, compõem a maneira com que
o STUR realiza sua circunscrição espacial. A força centrípeta no STUR consiste
no movimento de populações que migram na busca de benesses e melhorias que a
cidade oferta, como no acesso a serviços de educação e saúde, instituições de
fomento/apoio à produção, bancos, mercados e tantas outras “facilidades”
urbanas. Isso induz novos contextos de inserção de sujeitos na cidade e requer
formação de complementos de renda e obtenção de alimentos nos interiores. Essa
demanda impulsiona parte dos sujeitos novamente aos interiores (força
centrífuga), que levam uma série de produtos industrializados configurando
aspectos do processo da urbanização extensiva (Monte-mór
1994, 2006). Essa força centrífuga também ocorre pela busca do complemento
dual: através da demanda de produtos regionais ou produção rural e pecuária, a
economia mercantil dominante influencia e incentiva a economia popular do STUR
usufruindo de seus saberes em navegar, coletar, pescar, etc.
b)
O cenário mais
preocupante encontrado nas pesquisas sobre os fluxos de embarcações do STUR em
todas as cidades, foi a enorme quantidade de madeira transportada dos
interiores para a cidade (Figura 5). Como o Instituto de Desenvolvimento
Agrário do Amazonas (IDAM) confirmou, são pouco numerosas as iniciativas de
Planos de Manejo municipais, e pelas várias pilhas de madeira de lei vistas nas
beiras de rio das cidades, se deduz que essa atividade ilegal é uma das mais
intensas. Mas grande parte dessa madeira cumpre uso social de extrema serventia
na construção de moradias e embarcações.
c)
Conflitos entre STUR e
STUF ocorrem em disputas territoriais entre pescadores e o capital mercantil.
Colônias de pescadores tem realizado auxilio na formação de acordos de pesca
junto ao IBAMA na implementação de defesas contra pesca predatória e industrial
financiadas pelos frigoríficos do STUF. Pressionados ao norte pelas tensões e
limitações da APA[viii]
e a leste pela pressão de grupos de pescadores paraenses, os pescadores de
Parintins são “empurrados” e impelidos a realizar percursos cada vez mais
distantes em direção a oeste. Passam a ter obrigação de atingir produtividade
elevada para custeio dos gastos feitos na cidade. Gelo, gasolina e alimentos
(fluxos adjacentes fornecidos pelo capital mercantil na cidade), são gastos
altos que exigem apropriação do excedente de trabalho. O pagamento
insignificante pelo quilo na maioria das espécies de pescados também agudiza a
tendência de parcos rendimentos monetários dos pescadores.
d)
Corroborando com
constatações de estudos relativos à calha do rio Solimões no estado do Amazonas
(Moraes y Schor 2010; Moraes 2008; 2014), percebe-se
semelhança quanto à demanda de alimentos no mercado urbano que vem alterando
cada vez mais itens da dieta regional, com marcante a presença de conserva,
frango congelado, embutidos e outros produtos industrializados. A substituição
paulatina dos fogões à lenha pelo uso de botijas é ainda tímida. A
comercialização de ração também foi bastante notada, demonstrando prática da
criação animal nas comunidades como fonte de proteína, principalmente o frango
e suínos. A insuficiente produção de farinha no baixo Amazonas tem sido suprida
pela importação do Pará (figuras 5 e 6).
e)
As cidades pequenas do entorno
de Parintins caracterizam-se por seu caráter funcional mais local, atendendo
sua região imediata com alcance espacial “mínimo” considerando a escala
municipal, mas atingindo longínquas comunidades das bacias hidrográficas. No
quadro urbano sub-regional, possuem centralidade baixa limitando-se a atender
seus entornos distribuindo alimentos oriundos do complexo agroindustrial do
centro-oeste e sudeste brasileiro e possuindo irrisória produção local de
alimentos (figuras 5 e 6).
f)
Calhas de rios condicionam
dinâmicas fluviais e ribeirinhas, centrais para formação da situação,
onde os papeis na Divisão Territorial do Trabalho são estruturados também pelo
tipo de circulação calhas de rios. Comunidades situadas nos altos cursos dos
rios nas áreas municipais são mais “fechadas” e voltadas para mediações e
mercados das sedes municipais, possuindo baixa complexidade de funções
produtivas e comerciais, mas apresentando considerável atividade extrativista e
de subsistência. Já as comunidades e distritos da rede urbana localizadas no
rio principal e proximidades (rio Amazonas), são mais “abertas” e dinâmicas,
recebendo fluxos da metrópole Manaus a oeste e da rede urbana paraense a leste
(Figura 6).
g)
O regime fluvial, a
fisiografia dos rios e a geomorfologia do sítio das cidades, necessitam ser
entendidos como variáveis que condicionam ou limitam a
navegação e atracação de embarcações, o que pode refletir em perdas e ganhos de
centralidade e na forma como configuram os usos e disputas pelas margens
fluviais, lagos e seus estoques pesqueiros. Associar a discussão do sítio (base
física do plano) à situação (relações com a rede, fluxos e centralidade) requer
entendimento de que as redes locais de sujeitos realizam disputas territoriais
pelo controle das margens fluviais (privatizações das beiras de rio), inerentes
ao processo de territorialização em que o capital mercantil tem sido
preponderante. Proprietários de embarcações realizam diversas atividades e
serviços laborais na cidade necessitando complementos de renda e de alimentos
exercendo outras atividades nos interiores. Sobre estas, destacamos o
extrativismo, a pecuária de pequena escala, agricultura, pesca, caça e a
criação de animais. Assentados em
ocupações irregulares urbanas, também necessitam “absorver” complementos
recursivos dos interiores: madeira para moradia popular, construção de barcos
ou para pequena indústria moveleira; pescados; palha; piaçava; carne de caça ou
quelônios, pequenas criações de gado, produtos da agricultura de subsistência e
do extrativismo, etc (figuras 5 e 6).
Figura
5: Produtos
que chegam a Barreirinha dos interiores.
Fonte: BARTOLI (2020b)
Figura 6 – Produtos que chegam a
Urucará
Fonte: BARTOLI (2020a)
Essa caracterização laboral multifuncional é um dos aspectos
centrais das territorialidades do STUR, sinalizando a capacidade adaptação dos
sujeitos em criativos modos de obtenção de alimentos e subsistência, sendo um
dos elementos mais promissores para repensar uma biorregião
urbana funcional com melhor soberania alimentar.
Há urgência de
reinterpretar o território não como um suporte passivo, mas fruto de longa
trajetória coevolutiva e relacional (transescalar e multitemporal) –
envolvendo diversas outros tipos de territorialidades e concepções de vida. A
análise multidimensional permite entender que as reterritorializações
são resultantes de processos diversos. Do contexto de expulsões de posseiros,
grilagens de terras, invasões de terras indígenas e diversas outras formas de
acumulação primitiva, há extração de excedentes também potencializadas pelas
novas formas de dependência construídos a partir das cidades. Dialeticamente, a
atratividade do milieu urbano para acesso às
redes de ensino, saúde e mercados, tem formado novas energias em formas de
resistências. A proposta analítica da biorregião
enquanto componente do Patrimônio Territorial, pode evoluir no diálogo com o
modelo STUR na auxiliando a temática da soberania alimentar e manejo de
recursos apoiados em estratégias emancipatórias.
O ambiente urbano, a
cidade, seus fixos e fluxos a partir de incontáveis subsistemas territoriais,
passam a embasar “retornos a territórios” devido ao acelerado processo des-re-territorializante. Potencializados também pela
urbanização, a fluidez, a maleabilidade e a flexibilidade (não nos termos
pós-fordistas) oriundos da criatividade popular, são associados à sazonalidade
e adaptações socionaturais carregadas de saberes e
práticas arraigadas dos sujeitos do STUR. Forma-se uma situação sub-regional
parintinense com forte circunscrição territorial,
cuja constatação da existência de um milieu
urbano-ribeirinho portador de enorme densidade de relações territoriais,
vai de encontro com as teorias dominantes que interpretam as cidades amazônicas
como portadoras de “baixo dinamismo”.
A análise de novas centralidades
multidimensionais e dinâmicas escalares que incluem as territorialidades das
famílias “urbano-ribeirinhas”, consideram desde suas relações umbilicais com
interiores, aldeias comunidades e vilas até as beiras de rio e os múltiplos
modais de moradias situadas em palafitas até as embarcações.
O equilíbrio entre estoques de biodiversidade e sua
exploração pela demanda urbana deve ser central para proposições de políticas
de desenvolvimento, pois tratam de setores da economia popular (STUR - cumprindo
atributos de uma produção, circulação e mercados socialmente necessários[ix])
que poderiam abastecer os bairro populares e comunidades, e não reforçando a
dependência atual gerada pelo domínio de empresas desde o agronegócio até
frações locais do capital mercantil (STUF). Há preocupação quanto ao futuro dos
estoques recursivos, salientando que essa manutenção de recursos para melhoria
de valores de uso depende da mediação urbana. A análise reforça a importância
do caráter mediador da cidade e das redes de sujeitos locais na produção de
territórios e no controle e processamento de recursos atrelados à necessidade
de construção de projetos coletivos. A ideia de biorregião
é uma das dimensões que compõe o patrimônio territorial, e pode contribuir para
repensar os papéis de cidades médias de responsabilidade territorial como
Parintins e as cidades pequenas sob sua influência (BARTOLI, et all., 2019). Planejar infra estruturas socio-naturais
alimentares e madeireiras regionais em favor das populações locais é tarefa
urgente para se repensar o futuro da “floresta urbanizada”.
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Notas
[i] O termo sub-região será utilizado correspondendo a
microrregião de Planejamento do IBGE, cujas cidades pequenas de Nhamundá,
Urucará, São Sebastião do Uatumã, Maués, Boa Vista do Ramos, e Barreirinha
estão sobre influência de Parintins (cidade média de responsabilidade
territorial).
[ii] Visamos contribuir com os debates relativos ao
Projeto de pesquisa coordenado por Valdir Roque Dallabrida
(Universidade Federal do Paraná - UFPR), intitulado O patrimônio Territorial
como referência para o desenvolvimento de territórios e regiões
(CNPQ-UFPR), que envolve 18 universidades (Brasil, Portugal, Espanha e
Colômbia) e 38 pesquisadores.
[iii] No canal do YouTube do Núcleo de Estudos
Territoriais da Amazônia (NETAM) o documentário Vivendo em barcos apresenta
resultados de pesquisas: https://www.youtube.com/watch?v=Vj6Pss9UwRs
[iv] PRIN: Progetti di Rilevanti Interessi
Nazionali; MIUR: Ministero dell’Istruzione, dell’Università
e della Ricerca.
[v] Há variada pulverização dos investimentos do chamado
capital mercantil, que em constante metamorfose se adapta a diversas
circunstâncias e cenários. No caso de Parintins, tais esferas também se
aproveitam do boom gerado pelo
sucesso do Festival Folclórico, se inserindo em atividades hoteleiras, redes de
supermercados, agências de turismo, empresas de locação de equipamentos de som
e iluminação, etc.
[vi] Realizados em 2019 fazendo parte do Projeto Rede
urbana, Tipologia de Cidades e Sistemas territoriais Urbano-ribeirinhos no
Baixo Amazonas, fazendo parte de bolsa produtividade concedida pela
Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
[vii] https://www.gov.br/pt-br/noticias/justica-e-seguranca/2020/12/policia-federal-faz-apreensao-historica-de-madeira
[viii] A APA Nhamundá possui enorme complexidade. Com 33
comunidades/localidades abrigam 1.400 famílias, que juntas totalizam cerca de
7.000 pessoas. Isso desencadeia disputas e tensões em variadas frentes pela
gestão dos recursos. Embora a APA possua recursos naturais ainda bastante
conservados, percebe-se que algumas atividades como a pesca, sofre intensa
busca das espécies e consequentemente a diminuição gradativa do estoque natural
(SEMA, 2015).
[ix] Milton Santos e Maria Laura Silveira (2001)desenvolvem essa ideia do socialmente necessário
ao analisar as produções alienígenas e alienadas em vastas porções do
território nacional.