Eutopia. Revista de Desarrollo Económico Territorial  N.° 21, junio 2022, pp. 9-29

ISSN 13905708/e-ISSN 26028239

DOI: 10.17141/eutopia.21.2022.5362

 

 

 

Impacto da covid-19 na comercialização de alimentos da agricultura familiar no Rio Grande do Sul, Brasil

 

Impact of covid-19 on family farming food markets at Rio Grande Do Sul, Brazil.

 

 

 

 

 

 

Potira Viegas Preiss.Pesquisadora no Programa de Pós-Graduação e Desenvolvimento Regional da Universidade de Santa Cruz do Sul - PPGDR/UNISC, via PNPD/CAPES, potipreiss@gmail.com ,

https://orcid.org/0000-0002-0098-1588

Gustavo Pinto da Silva. Professor Titular do Colégio Politecnico da UFSM, gustavo.pinto@ufsm.br , https://orcid.org/0000-0002-8567-7664

Cidonea Machado Deponti. Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional (PPGDR/UNISC).cidonea@unisc.br, https://orcid.org/0000-0001-8833-1450

Zenicléia Angelita Deggerone. Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Sustentabilidade (PPGAS/UERGS), zenicleiadeggerone@gmail.com, https://orcid.org/0000-0003-4286-4686

 

 

Recibido: 03/03/2022 - Aceptado: 12/05/2022

Publicado: 30/06/2022

 

 

Resumo

A pandemia Covid 19 trouxe uma série de desafios para o cotidiano da população, com efeitos sobre as condições de abastecimento alimentar e sob os principais provedores de alimentos, os agricultores familiares. Este estudo visa compreender esses efeitos sobre os espaços de comercialização direta da agricultura familiar no RS (Brasil) e os impactos nas dinâmicas de abastecimento em que estão envolvidas, sua saúde e renda. Trata-se de uma pesquisa de caráter exploratório, com análise de dados qualitativos e quantitativos. O estudo mapeou os canais de comercialização direta vinculados à agricultura familiar, de cinco grandes regiões do Rio Grande do Sul , de um total de 119 municípios. Ao todo foram identificadas 152 experiências de feiras, englobando o trabalho de 2.747 famílias de agricultores familiares. A maioria das feiras permaneceu ativa durante a pandemia, variando em termos de adaptações nas medidas de segurança. O estudo identifica a resiliência dos agricultores, a capacidade de mobilização de consumidores, bem como o papel de organizações governamentais e não governamentais na reconstrução dos sistemas agroalimentares, com destaque para dinâmicas diferentes conforme as regiões estudadas. A pesquisa contribui com um mapeamento inédito da localização dos canais de comercialização direta da agricultura familiar no estado.

 

 

Palavras chave: pandemia; mercados; abastecimento; canais curtos de comercialização.

 

 

Abstract

 

The COVID-19 pandemic brought a series of challenges to daily life, with effects on the food supply chain and its main food providers, family farmers. This article aims to understand the effects on family farmers’ markets in the south of Brazil, Rio Grande do Sul State and its impacts on the dynamics of the food supply in which they are involved, as well as in their health and income. This is an exploratory research, which analyzes qualitative and quantitative data and has mapped family farmers markets in five large regions of the southernmost state of Brazil, out of a total of 119 municipalities. Altogether, 152 experiences were identified, encompassing the work of 2,747 families. Most markets remained active during the pandemic, varying in terms of safety measures. The study identifies the resilience of farmers, their ability to mobilize consumers, as well as the role of governmental and non-governmental organizations in the reconstruction of agrifood systems, highlighting different dynamics according to the studied regions. The research contributes with an unprecedented mapping of the location of family farmers' direct markets in the south of Brazil.

 

 

Keywords: pandemic; markets; food supply; short marketing channels

 

 

Introdução

 

Em meados de março de 2020 a pandemia COVID-19 chegou ao Rio Grande do Sul (RS) trazendo uma série de alterações ao cotidiano da população. A necessidade de afastamento social vivida em todo o país como forma de prevenção à COVID-19 afetou profundamente a vida social e econômica brasileira. Para além da crise sanitária que já ceifou mais de cinco milhões de pessoas, também teve sérios efeitos no abastecimento alimentar e nas condições de renda de boa parte da população, em especial dos agricultores familiares (FAO 2020, Salazar et al. 2020, Urcola e Nogueira 2020).

Em algumas cidades, medidas governamentais orientaram novas normas de funcionamento, para que serviços essenciais como o abastecimento alimentar permanecessem ativos. Considerando que os principais protagonistas da produção e da distribuição de alimentos no Brasil e no mundo são os agricultores familiares, vale nos questionarmos sobre a profundidade dos efeitos sobre esse grupo social, como suas participações nos mercados são afetadas e como reagem. Segundo dados do último Censo Agropecuário, 76,8% dos 5,073 milhões de estabelecimentos rurais do Brasil são pertencentes à agricultura familiar, sendo que o RS apresenta 992 mil pessoas envolvidas (IBGE 2021). Mesmo com a importância reconhecida no abastecimento de alimentos in natura, principalmente pelas frutas e hortaliças, esta categoria social acabou diretamente afetada pelas medidas de contenção ao avanço da Covid-19.

Entre os efeitos negativos, ocorreram fechamentos de feiras livres e redução das compras públicas (Cavalli et al. 2020, Bocchi et al. 2019). Também, houve certo direcionamento da população para o abastecimento nos supermercados (Urcola e Nogueira 2020), que nem sempre adquirem produção dos agricultores familiares, mas de distribuidores especializados. O resultado foi que muitos agricultores tiveram de jogar fora alimentos a exemplo de leite, ou verem se perderem devido à queda de demanda e consequentemente de preços pagos para os produtores (Gracia-Arnaiz 2021).

A redução da comercialização compromete ainda mais a renda destas famílias, que já vivem um contexto de vulnerabilidade social. Historicamente preteridas frente à agricultura patronal nas políticas públicas, essa população tem se caracterizado por um perfil envelhecido, com baixa escolaridade e restrições em termos de serviços básicos (IBGE 2019a). Apesar de liderarem a produção nacional de alimentos, dados da Rede Penssan (2021), indicam que a fome atinge 14,3% dos agricultores familiares, sendo que 65,2% apresentam algum nível de insegurança alimentar. Uma realidade funesta relacionada à precariedade econômica que boa parte dessa categoria social vive, aumentando sua fragilidade em um contexto de COVID-19. Dada à dependência que temos dos alimentos que produzem, os impactos na agricultura familiar geram repercussões que afetam toda a sociedade. 

A repercussão da pandemia sobre a produção, a distribuição e a oferta de alimentos indica diferentes efeitos nos distintos estratos da agricultura familiar (Schneider et al. 2020). A preocupação maior se torna com os agricultores que já enfrentam vulnerabilidades por operar com escalas menores, em que os canais de comercialização tiveram o funcionamento suspenso ou restrito (Preiss 2020), reforçando falhas dos sistemas alimentares em fornecer alimentos locais, mas também seguros e saudáveis.

Mesmo com as dificuldades, os agricultores familiares e suas organizações, buscaram estratégias para amenizar os efeitos causados pela pandemia, fossem sobre a saúde, a renda ou nas dinâmicas de abastecimento local. Neste sentido, este artigo tem como objetivo compreender como a pandemia COVID-19 tem afetado os espaços de comercialização direta vinculados à agricultura familiar no RS, e seus impactos nas dinâmicas de abastecimento em que estão envolvidos, na saúde e na renda.

O trabalho tem como base uma pesquisa de caráter exploratório, com coleta de dados qualitativos e quantitativos. O estudo focou em cinco grandes regiões do estado do RS, sul do Brasil, onde há um expressivo número de agricultores familiares. Essa análise é relevante não só por que a crise ainda está ativa, mas também por que pode orientar a ação pública seja frente a esta crise ou processos vindouros com repercussões semelhantes.

Além desta introdução o artigo está estruturado em quatro seções. A primeira seção trata da importância da agricultura familiar e as formas pelas quais esse grupo social interage com os mercados. A segunda seção apresenta os caminhos metodológicos, sendo os resultados e discussões, apresentados na sequência. Para finalizar, considerações são delineadas sobre o estudo e perspectivas sobre a comercialização em tempos de pandemia.

 

Referencial teórico: a agricultura familiar e seus mercados

 

Em termos globais, a agricultura familiar é responsável pela maioria das unidades de produção de alimentos, tendo um papel essencial no abastecimento da população, na geração de trabalho agrícola e na gestão dos recursos em áreas rurais (FAO e IFAD 2019). Dada à relevância social desta categoria, as Nações Unidas proclamaram o período de 2019 a 2028 como a década Internacional da Agricultura Familiar, visando trazer maior visibilidade e reconhecimento ao papel destes atores que são imprescindíveis na construção de sistemas agroalimentares diversos, saudáveis e sustentáveis.

Segundo dados da FAO (2020), os agricultores familiares são responsáveis por cerca de 80% do valor da produção de alimentos no mundo, tendo 500 milhões de pessoas dedicadas a atividades agropecuárias. Coleto et al. (2021), argumenta que este grupo representa 67% da população ocupada com o trabalho agropecuário, sendo que 31% desta soma são mulheres. Ademais, a agricultura familiar tem se destacado no cenário internacional por liderar as ações de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas e na transição agroecológica, sendo um grupo prioritário para o enfrentamento da pobreza e vulnerabilidade social (Caron et al. 2020, FAO 2020).

No Brasil, é a principal produtora no mercado de alimentos, responsável por 77% dos estabelecimentos agropecuários (3,9 milhões de estabelecimentos) e 67% da população ocupada no campo (IBGE 2019a). Ainda que nas décadas recentes diferentes políticas públicas tenham sido direcionadas para apoio a produção agrícola, inclusão socioeconômica, acesso à terra, as ações do Estado segue sendo desproporcionais quando comparadas a agricultura patronal e insuficientes para alavancar o potencial e a qualidade de vida desses atores (Grisa e Schneider 2015, Preiss et al. 2020).

Sendo assim, os mercados que acessam se tornam imperativos para a geração de renda e as condições de reprodução social dessa população. A inserção dos agricultores nos mercados não acontece de forma homogênea. Tendo como referência o trabalho de Schneider (2016), os agricultores familiares atuam em quatro tipos de mercados, sendo: convencionais, institucionais, territoriais e de proximidade.

Os mercados convencionais se caracterizam pela compra de produtos agroalimentares intermediados por atravessadores, agroindústrias, empresas privadas dentre outros canais, em que a relação comercial envolve um elevado grau de vulnerabilidades e riscos, pois as trocas e a definição do preço dos produtos são mediadas pela oferta e demanda que acontecem em âmbito global (Schneider 2016). Por sua vez, os mercados institucionais têm no poder público o principal comprador em vistas de atender a demanda alimentar proveniente de instituições públicas como escolas, hospitais, universidades, etc (Schneider 2016). No Brasil, os principais instrumentos públicos que possibilitam a compra dos produtos agroalimentares são o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), políticas públicas de alta relevância que passaram por diferentes adaptações frente à pandemia (Grisa e Rauber 2020).

 Os outros dois tipos de mercado são frequentemente estudos dentro da abordagem dos canais curtos de comercialização (Preiss e Schneider, 2020). Nos mercados territoriais as trocas são estabelecidas por meio da intermediação de cooperativas da agricultura familiar e redes regionalizadas, de forma que na medida em que cresce a demanda por produtos agroalimentares, o território de atuação desses mercados se expande. Por fim, os mercados de proximidade são aqueles em que os agricultores familiares atuam na comercialização direta com os consumidores, sejam nas propriedades rurais, feiras locais, grupos de consumo, via entrega domiciliar, dentre outros. Os canais de venda adotados propiciam relações diretas com os consumidores, permitindo que 100% dos valores pagos fiquem com os agricultores familiares. 

Estes canais são reconhecidos por ofertar alimentos com qualidade diferenciada, com produtos in natura diversificados, artesanais e pouco processados, estando alinhados com uma alimentação saudável e apresentando valores acessíveis, inclusive se tratando de produção agroecológica e orgânica (Arantes e Recine 2018, Preiss e Schneider 2020). Conforme explicam Preiss e Schneider (2020), os preços se tornam mais acessíveis devido à ausência de intermediários na cadeia de abastecimento. A acessibilidade dos produtos é um fator crucial da segurança alimentar, tendo diferentes estudos mostrados que os canais de comercialização vinculados a cadeias longas de abastecimento, em especial, os supermercados originam valores mais elevados aos consumidores, seja pelo maior custo que serviços em larga escala têm, seja porque se apropriam de forma injusta e coerciva dos fornecedores, tendo práticas desfavoráveis aos agricultores familiares (OXFAM 2018, Matioli e Peres 2020).

Ademais, devido a relação que se cria entre quem produz e quem consome, permitem uma relação de proximidade e cuidado entre as partes, caracterizados por empatia, confiança, reconhecimento e amizade (Pra et al. 2016). A proximidade destes canais permite também um maior controle dos consumidores no que consomem, minimizando parte das incertezas provenientes de uma alimentação industrial e que podem afetar a saúde das pessoas (Silva e Zanella 2020). Para além da comercialização dos alimentos, têm sido interpretados na literatura como importantes espaços de socialização e de integração das dinâmicas de vida rural-urbana, com efeitos positivos na dinamização das economias locais e no desenvolvimento regional (Gazolla e Schneider 2017, Preiss e Deponti 2020). Por estes motivos, os mercados de proximidade foram escolhidos como ponto de foco analítico, em especial os canais de comercialização das feiras que foram as modalidades mais afetadas pelas medidas de isolamento social mobilizadas em resposta a COVID-19.

 

Caminhos metodológicos

 

Este estudo é fruto de uma pesquisa de caráter exploratório com a coleta de dados qualitativos e quantitativos. O trabalho partiu de um mapeamento dos canais de comercialização, em especial feiras e venda com entrega domiciliar vinculados à agricultura familiar, tendo como fonte de dados pesquisas previamente realizadas pelos membros da equipe de pesquisadores, sites de prefeituras e iniciativas cadastradas na plataforma “Mapa de Feiras Orgânicas”. A identificação dos canais de comercialização também contou com o apoio e participação dos escritórios regionais e municipais da Emater-RS/ASCAR, que através do envolvimento de seus extensionistas rurais, facilitaram o contato com os gestores das feiras.

Para a coleta de dados foram preparados quatro formulários on-line distintos, com questões de caracterização do canal de abastecimento (data de surgimento, localização, responsáveis, endereços de mídias sociais) seu funcionamento (data e horário de realização), características gerais da experiência (processo histórico, origem e numero de agricultores envolvidos, origem e numero de consumidores envolvidos, características dos produtos comercializados e estratégias de adaptações frente a COVID-19 (em termos organizacionais, logísticos, sanitários, apoio recebido, dinâmica de interação e comunicação com consumidores). Cada formulário considerava diferentes tipos de comercialização e cenários frente a COVID-19: 1. Feiras que seguiam ativas; 2. Feiras funcionando apenas como sistemas de entrega de alimentos; 3. Feiras suspensas e sem nenhum tipo de comercialização e 4. Sistema de Comércio com entrega domiciliar. Neste artigo serão apresentados os resultados referentes às feiras. A coleta dos dados ocorreu de 6 de abril a 31 de julho de 2020, sendo os responsáveis das feiras entrevistados via telefone, reunião virtual ou presencialmente pela equipe do projeto.  

O estudo teve como referência geográfica a divisão utilizada pelos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (COREDEs), tendo como foco empírico cinco regiões do RS, a saber: Metropolitana Delta do Jacuí, Vale do Caí, Vale do Rio Pardo, Central e Norte. Outrossim, no caso da região Central houve a união de três COREDEs (Central, Vale do Jaguari e Jacuí Centro), considerando um histórico de identidade e auto-reconhecimento da agricultura familiar neste território. Juntos correspondem a 119 municípios dispostos em uma área de 58.794,6 Km2 e população total de 4.066.854 habitantes. A coleta de dados abrangeu 24% dos municípios do estado e 35,4% da população total do RS, indicando certa representatividade em termos de estado.

A escolha das regiões considerou representatividade e heterogeneidade da presença da agricultura familiar e sua relevância na produção de alimentos, englobando um total 203.927 agricultores familiares, com suas identidades socioculturais e dinâmicas econômicas específicas. As regiões escolhidas para o estudo também representam a rota de disseminação da COVID-19 no estado, desde a área metropolitana para as regiões mais interioranas. A seguir apresentamos uma breve descrição dessas regiões.

 

3.1 Região Metropolitana do Delta do Jacuí

 

A região envolve 10 municípios, incluindo a capital do estado - Porto Alegre, com uma população total de 2.550.679 milhões de habitantes, dos quais 97,62% residem em áreas urbanas (FEE 2018). Os setores de serviços e indústria prevalecem como atividades econômicas. A agropecuária é um setor com participação reduzida, tendo 36.369 agricultores 21.305 enquadrados como familiares, sendo 14.447 homens e 6.858 mulheres (IBGE 2021). Em termos de produção, nenhum destes municípios se destaca no ranking de maiores produtores do RS. Porto Alegre se destaca como mercado consumidor para a região como um todo, tendo o número de canais de comercialização identificados muito maior do que os mapeados nos demais municípios.

 

 3.2 Região Vale do Caí

 

Esta região envolve 19 municípios, com uma população total de 192.898 habitantes (FEE 2018), dos quais 74% residem em áreas urbanas e 26%, em áreas rurais. Em termos de atividade econômica, predomina o setor de serviços com um valor adicionado bruto de 50,2%, a indústria (32,8%) e agropecuária (17%) (Corede Vale do Caí 2015). Existem na região 13.662 agricultores familiares, dos quais 8.433 são homens e 4.930 são mulheres (IBGE 2021). Das atividades agropecuárias destacam-se a citricultura, a produção leiteira, a olericultura e a avicultura, sendo que diferentes municípios da região se destacam no ranking de maiores produtores do RS de laranja e de bergamota. A cidade polo é Montenegro, porém essa centralidade se materializa em termos de oferta de serviços de educação, saúde e comércio em geral, mas não em relação a abastecimento frente aos demais municípios da região.

 

 

3.3 Corede Vale do Rio Pardo

 

Englobando 23 municípios, a região do Vale do Rio Pardo possui 437.233 habitantes (FEE 2018) com 37% em áreas rurais, ainda que em 10 dos municípios a população rural seja superior a 70%. Esta é uma das regiões com maior número de agricultores familiares do RS, uma população de 144.193 pessoas das quais 87.434 são homens e 56.759 mulheres (IBGE 2021). O destaque econômico é para a produção agropecuária, sendo a principal produção o fumo que apresenta forte presença no ranking nacional. Na produção de alimentos no estado tem proeminência no cultivo de feijão preto, abóbora e mandioca. A cidade polo é de Santa Cruz do Sul, tendo um importante papel na região em termos econômicos, culturais e educacionais.  

 

3.4 Região Central

 

A Região Central é formada por 35 municípios, dividido politicamente em três COREDEs, que juntos apresentam uma população de 653.723 habitantes, majoritariamente urbana. Excetuando-se Santa Maria, onde o setor de serviços tem uma participação expressiva, a agropecuária é a atividade econômica de maior relevância na região. Conforme os dados do Censo Agro 2017, dos 14.623 estabelecimentos da região 12.062 são agricultores familiares, dos quais 15.904 são homens e 10.236 mulheres. As principais produções são a soja na região de Planalto e de arroz na Depressão Central. Paralelamente, a pecuária de corte, que já foi prioritária neste território, perdeu espaço para as culturas anuais, e agora vem se adaptando por meio de sistema de integração lavoura – pecuária. Santa Maria é o município com a maior população da Região Central, estimada em 282.123 pessoas (IBGE 2021). A cidade destaca-se por uma população não residente, em função de a cidade ser polo regional de saúde, educação e militar.

 

3.5 Região Norte

 

A região Norte abrange 32 municípios, com uma população de 232.321 habitantes (FEE 2018). Em termos de atividade econômica, os setores de serviços e indústria tem uma participação mais expressiva, quando comparada ao setor agropecuário. Conforme os dados do Censo Agro 2017, 69.464 habitantes são agricultores familiares, sendo que 42.916 são homens e 26.548 mulheres. A produção da região é centrada em cereais, frutas, olerícolas e produtos de origem animal (suínos, aves, bovinos de leite e de corte). A cidade polo é Erechim com uma população atual de 106.603 (IBGE 2019b).

                                               

 

Resultados e Discussão

 

O estudo mapeou 170 experiências de comercialização direta da agricultura familiar, das quais 152 eram feiras de produtores que vivenciavam distintas situações frente à COVID-19 e 18 casos referem-se ao comércio vinculado à agricultura familiar com entrega domiciliar, conforme ilustrado na figura 1. 

 

Figura 1 - Localização das experiências mapeadas pela pesquisa

 

Fonte: Autores 2021.

 

Em termos quantitativos, a região Metropolitana se destacou com 82 canais de comercialização, seguida da região Central com 41, conforme detalhado na tabela 1. Na Região do Vale do Rio Pardo foram identificadas 16 feiras em funcionamento, três feiras inativas e um ponto de comercialização que passou a fazer entrega domiciliar de alimentos. Já no Vale do Caí, constataram-se sete feiras ativas, uma feira inativa e três feiras e um comércio de alimentos que passaram a fazer entregas domiciliares. Na região Norte, 11 feiras permaneciam ativas, sendo que dessas, duas também passaram a atuar com entregas domiciliares. E também se verificou que dois empreendimentos comerciais passaram a realizar entregas domiciliares de alimentos. No que diz respeito aos períodos de funcionamento das feiras, não é possível estabelecer um padrão visto que no conjunto há uma variedade de situações, tendo feiras com ocorrência nos diferentes turnos do dia (manhã, tarde e noite) e em distintos dias da semana.

 

Tabela 1. Quantitativo de canais de comercialização identificados nas regiões estudadas.

 

 

Tipo de Canal

Metropolitana

Vale do Rio Pardo

Central

Norte

Vale do Caí

Total

Feiras Ativas

59

16

32

11

7

125

Feiras Inativas

8

3

3

 

1

15

Feiras atuando apenas com Sistema de Entrega Domiciliar

3

 

5

1

3

12

Comércio com entrega domiciliar

12

1

1

2

2

18

Total

82

20

41

14

13

170

Fonte: Autores 2021.

 

Considerando que as feiras livres são formadas por uma diversidade de circuitos de comércio e de tipos de feirantes, foram classificadas em três tipos, conforme o tipo de produto comercializado:

1. Feiras Convencionais são aquelas que comercializam alimentos produzidos por agricultores familiares a partir de um manejo convencional de produção, não assumindo compromissos sobre o uso e/ou monitoramento de agrotóxicos, e por vezes acolhendo a participação de feirantes não agricultores;

2. Feiras Agroecológicas são aquelas onde foi mencionada a comercialização de produtos com base agroecológica e distintas formas de certificação orgânica;

3. Feiras Mistas são aquelas onde há coexistência de comercialização tanto de produtos convencionais como produtos de base agroecológica, provenientes da agricultura familiar, mas nem sempre com mecanismo regulamentado de distinção.

Considerando esta classificação, percebemos que a maioria das feiras é convencionais (63), seguidas de feiras mistas (54), e por último as de base agroecológica (34). Dois elementos se destacam em uma análise mais detalhada sobre esse resultado. A primeira é que há uma maior incidência de feiras mistas no interior do estado do que na região metropolitana (Tabela 2). Acredita-se que essa prevalência está associada ao desenvolvimento de experiências pioneiras em termos de produção agroecológica nos municípios, e que passam a ter espaços para comercialização nas feiras já existentes. De forma paralela, o público consumidor de produtos diferenciados parece estar menos consolidado nas cidades do interior.

Segundo, o município que se destaca com maior número de feiras orgânicas é Porto Alegre, localizado na Região Metropolitana. Nesse sentido, é importante considerar que a feira mais antiga da cidade é a Feira dos Agricultores Ecologistas (FAE) fundada em 1989, estando entre as mais antigas da América Latina, tida como referência para a formação de experiências comerciais similares no RS e no Brasil. Só a FAE possui aproximadamente 500 agricultores familiares que tem sua origem justamente em três outras regiões do estado (Litoral, Serra, Vale do Taquari e do Caí), além da região metropolitana. Além de ser uma fonte de renda relevante para esse conjunto de famílias agricultoras, são feiras que beneficiam um público consumidor de aproximadamente 10 a 12 mil pessoas por semana.

 

Tabela 2 - Quantificação de feiras livres, segundo o tipo de produto comercializado.

 

Metropolitana

Rio Pardo

Central

Norte

Caí

Total

Feiras Orgânicas

22

4

5

 

3

34

Feiras convencionais

44

10

4

2

3

63

Feira Mista

4

4

31

10

5

54

Fonte: Elaborado pelos autores (2021).

 

No Estado do RS, segundo dados do Censo Agropecuário 2017-2018, existem 294 mil estabelecimentos (80,5%) da agricultura familiar e 992 mil pessoas envolvidas em atividades agropecuárias (IBGE 2021). A pesquisa constatou cerca de 2.747 famílias envolvidas na produção e comercialização de alimentos, das quais 1.902 atuam nas feiras estudadas. Verifica-se a importância da Região Metropolitana para o acesso dos agricultores aos mercados de comercialização direta, já que envolve 8,3% a mais do que o conjunto das outras regiões.

No que diz respeito à origem dos agricultores, para 70% das experiências analisadas, eles residem no mesmo município em que comercializam os alimentos. Em 22% da amostra, os agricultores comercializam no município de residência e na região e outros 8% se estendem para fora da região de moradia. Esse padrão localizado se mantém para todo estudo, com exceção de dois municípios - Porto Alegre e Santa Maria - que apresentam maior incidência de agricultores provenientes de outros municípios. Em relação à região Norte, verificou-se que os feirantes são geralmente dos municípios de origem. A cidade de Erechim, por concentrar o maior quantitativo populacional da Região, possui o maior número de feiras mistas e de agricultores familiares. Estes feirantes organizados por meio da Secretaria Municipal de Agricultura conseguem atender a demanda de alimentos nas feiras, alimentação escolar e em outros pontos de venda. Portanto, os dados indicam um processo altamente localizado, semelhante aos encontrados em outras pesquisas realizadas com foco no comércio da agricultura familiar durante a pandemia, no Brasil e na América Latina (Tittonell et al. 2021; Recine et al. 2021).

Durante a pandemia, algumas organizações prestaram apoio aos agricultores, bem como informações de prevenção e cuidados de saúde frente o Covid-19. A pesquisa constatou que a Associação Rio-grandense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER/RS), responsável pelo serviço oficial de extensão rural no RS, foi a mais mencionada pelos feirantes, concordando com estudo realizado por Dutra et al. 2019, quando analisou o apoio recebido dos agricultores da região do Vale do Jaguari (RS) em relação à participação nos mercados de hortigranjeiros. Além de manter o fluxo de comércio nas feiras, a EMATER/RS teve uma ação ativa desde o início da pandemia, orientando os agricultores familiares sobre as formas de prevenção através de cartilhas e reuniões online. Além disso, para apoiar os agricultores, a EMATER/RS num segundo momento construiu uma plataforma digital de vendas de alimentos - Feira Virtual da Agricultura Familiar (FEVAF) (http://www.emater.tche.br/site/fevaf/#).

Em segundo lugar, as Prefeituras Municipais foram às instituições mais ativas, principalmente nos municípios de pequeno porte e nas áreas mais interioranas. As organizações coletivas dos agricultores familiares (cooperativas, associações, etc…) também se fizeram presentes, em especial na divulgação e comercialização dos produtos através das redes sociais. Em algumas regiões, as cooperativas passaram a criar grupos de whatsapp com a finalidade de organizar a demanda e venda, a exemplo da Cooperfamilia na cidade de Erechim-RS. O Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio Grande do Sul (CONSEA-RS) e Instituições de ensino que atuam com extensão vinculada a agricultura familiar também foram mencionadas.

 

 

4.2 Feiras ativas

 

Durante a Pandemia, a grande maioria das feiras seguiu ativa, ainda que com adaptações de segurança frente à COVID. Nos meses iniciais, não havia uma orientação muito clara, ficando a cargo dos municípios emitirem ou não decretos com medidas de restrição sobre as feiras. A norma mais impactante sobre as feiras ocorreu em Porto Alegre, em que o decreto nº 20.521 de 20 de março de 2020, impedia que feirantes oriundos de outros municípios comercializassem na cidade. Considerando os dados já apresentados que boa parte dos feirantes são provenientes de municípios do entorno e regiões próximas, o decreto inviabilizou a realização da maioria das feiras. O fato motivou uma mobilização social com a participação das organizações dos agricultores familiares, consumidores, CONSEA-RS, fortalecido por uma campanha nas redes sociais, A mobilização foi bem sucedida, visto que em uma semana o decreto foi revogado. Em parte, como salientam Urcola e Nogueira (2020), a pandemia também impulsionou a ação de consumidores em apoio à agricultura familiar consolidando o consumo como ato político.

No caso de Santa Maria, dois decretos foram emitidos pela Prefeitura, sendo que o primeiro foi em 24 de março de 2020 e estabeleceu as medidas restritivas e de contenção do contágio da pandemia nas feiras e, o segundo, apenas prolongou o tempo das feiras de quatro para 6 horas. Esse comportamento diverso sobre como implantar medidas de segurança nas feiras se repetiu nos municípios do RS, mas de modo geral obedeceu as medidas emitidas pelo Governo Estadual, que em maio de 2020 lançou o sistema de Distanciamento Controlado por meio de bandeiras com distintas cores, indicando o risco de contágio e medidas vinculadas. Em maio do ano seguinte, 2021, com a redução dos índices de contágio e aumento da crise econômica, o sistema foi alterado para um sistema de emissão de avisos, alertas e planos de ação para os municípios. Em ambos os casos, não houve medidas que impedissem a realização das feiras da agricultura familiar, porém continham orientações de distanciamento social e higiene na comercialização.

A pesquisa indica que as medidas tomadas para prevenção de contágio à Covid-19 foram majoritariamente uma iniciativa dos feirantes, tendo uma ampla variação nas diferentes dinâmicas de abastecimento conforme ilustra o gráfico 1. Em todas as feiras, ocorreu o fornecimento de álcool gel para higienização das mãos e exigência de uso de máscaras pelos participantes. Em segundo lugar, as medidas mais frequentes foram atender um número menor de pessoas por vez e fornecer informações de cuidados sobre medidas de proteção. Em alguns municípios, os decretos orientavam um limite para o número máximo de pessoas que podiam circular no espaço e em outros, os próprios feirantes estipularam limitações visando à precaução.

 

Gráfico 1 - Medidas de adaptação das feiras ativas frente à COVID-19.

Fonte: Autores 2021.

 

Outra medida bastante comum foi à alteração da conformação física da feira, aumentando o espaçamento entre as bancas de forma a minimizar aglomerações entre consumidores. Muitos feirantes, em especial aqueles com facilidade de uso de redes sociais, passaram a incentivar a realização de pré-encomendas dos produtos, reduzindo o tempo de interações na feira apenas para retirada dos produtos.

Para evitar riscos de contaminação, as feiras que comercializam produtos artesanais, como queijos, embutidos e panificados, precisaram suspender as atividades de degustação dos alimentos.  Nas feiras Casa do Produtor Rural de Montenegro (região Vale do Caí), na Feira de Produtos Orgânicos e Agroecológicos de Santiago (Região Central) e na Feira do Produtor de Barão de Cotegipe (Região Norte), houve medidas para reduzir e revezar quando possível o número de agricultores atuando na comercialização das bancas, dando prioridade aos mais jovens e resguardando os idosos.

Na Região Central, os feirantes da Feira da Praça Saturnino de Brito de Santa Maria e da Feira da Agricultura Familiar de Jaguari declararam ter aumentado o uso de embalagens, ainda que as evidências científicas tenham indicado que a possibilidade de contágio por consumo de alimentos fosse inviável (WHO 2020). Ainda que tenham mobilizado todas estas estratégias, a demanda nas feiras foi fortemente afetada na pandemia, pois em 50% das feiras houve redução da demanda, e 32% consideraram essa redução alta. O resultado se torna preocupante pela redução da renda e o aprofundamento da vulnerabilidade social e econômica.

Por outro lado, algumas feiras tiveram processo oposto, um aumento no movimento. Estes resultados podem ser explicados pelo aumento do consumo de hortaliças, frutas e leguminosas na vigência da pandemia (Steele et al. 2020), também relacionados ao aumento da preocupação das pessoas com a saúde e busca pelo fortalecimento do sistema imunológico (Dutra et al. 2020). O fato de as pessoas estarem mais tempo em casa, em decorrência do distanciamento social, também pode contribuir para o aumento da prática da alimentação em família (Jones 2018).

Ainda que os três cenários (redução, estabilidade e aumento) tenham ocorrido em todas as regiões, quando olhamos de forma pormenorizada, observa-se que no Vale do Rio Pardo, em especial no município de Santa Cruz houve aumento do movimento nas feiras. Já no caso das regiões Metropolitana e Central, tivemos um contexto inverso, com a maioria dos casos apresentando redução na demanda por alimentos. No Vale do Caí os relatos majoritários foram de estabilidades e na região Norte ocorreu apenas um caso de aumento na Feira Permanente Cooperfamilia de Erechim.

 

 

Feiras inativas

 

A suspensão das atividades das feiras ocorreu em todas as regiões, ainda que com maior incidência em Porto Alegre, com oito feiras agroecológicas com atividades paralisadas. A inatividade devido a decretos municipais impedindo as Feiras foi à motivação menos frequente, tendo ocorrido apenas nos municípios de Quevedos, Toropi, Gravataí e Venâncio Aires. Na maioria dos casos, as feiras foram suspensas devido ao fechamento do espaço em que a comercialização ocorria, tal como Instituições de ensino, centros comerciais, espaços de eventos, etc. Outro aspecto relacionado a paralisação das atividades foi a preocupação com a saúde dos feirantes, especialmente naquelas com pessoas nos grupos de risco.

Para mais de 75% dos feirantes, a suspensão trouxe um grave impacto na redução da renda. Apenas 25% dos participantes declararam que a repercussão financeira foi pouco preocupante devido à feira não ser a principal fonte de renda dos agricultores. A suspensão das atividades também repercute na socialização dos agricultores familiares, visto que as feiras também produzem vínculos sociais por meio das relações diretas entre produtores e consumidores, compartilhando memórias, identificação étnica, reciprocidades e trocas (Sabourin, 2009; Nora e Zanini 2015; Preiss e Schneider 2020).

 

Feiras atuando apenas com entrega domiciliar

 

A impossibilidade de manter as feiras ativas resultou na entrada de alguns feirantes em outra forma de comercialização, a entrega domiciliar com o auxílio das ferramentas digitais. Agricultores familiares que já possuíam um grupo fiel de consumidores ou uma presença ativa nas redes sociais começaram a circular listagens com os produtos que tinham disponíveis para encomenda e realizar a entrega domiciliar dos produtos.

Os sistemas de entrega domiciliar mobilizados pelos agricultores têm crescido nos anos recentes como uma alternativa econômica interessante que traz um aporte de renda aos agricultores, à medida que oferta um serviço com praticidade para consumidores, sendo caracterizado como um novo mercado digital. No contexto vivido pela pandemia, houve um forte impulsionamento dessa forma de comércio em diferentes partes do mundo, não sendo diferente no caso brasileiro (Tittonell et al. 2021; Worstell 2020).

Entre os casos estudados, a única região que não apresentou esta alternativa foi a do Vale do Rio Pardo, tendo um número variável de casos ocorridos nas demais regiões. De forma comparativa, a Região Central foi a que apresentou maior número de feiras atuando nessa modalidade (cinco), ainda que em termos de município o destaque ficou para Porto Alegre que apresentou três experiências de feiras agroecológicas atuando desta maneira. 

Aqui um elemento importante é que a dinâmica de um sistema de abastecimento com entrega domiciliar é bastante distinta do funcionamento de uma feira em que os produtos são expostos nas bancas e escolhidos pelos consumidores. A dinâmica envolve uma série de etapas distintas, que sistematizamos em seis passos: 1. Divulgação dos produtos, geralmente por meio de uma listagem anunciada via redes sociais ou Whatsapp; 2. Criação de uma dinâmica de encomendas que envolve normalmente propor dias específicos para realização da seleção dos produtos de forma que os agricultores possam planejar a colheita e a entrega; 3. O contato com os consumidores, em que há um diálogo para informações dos produtos e o funcionamento; 4. A organização e acondicionamento dos pedidos, sendo a quantidade de feirantes envolvidos e a distância entre eles, fatores cruciais para programar a logística; 5. Transporte e entrega, uma etapa delicada para que cheguem com qualidade ao consumidor final; 6. Recebimento dos pagamentos, o que pode ocorrer antes ou no ato da entrega, a depender das modalidades com que o agricultor feirante consegue receber.

Assim, ainda que pareça algo bastante simples, é um processo que envolve uma série de adaptações, por isso foram coletados dados sobre o processo de adaptação e dificuldade dos agricultores familiares nesta nova dinâmica. De acordo com 90% dos interlocutores, esta forma de comércio é mais trabalhosa do que a comercialização na feira. O gráfico 2 ilustra os resultados sobre o nível de dificuldade de cada etapa, sendo as mais desafiadoras a criação da dinâmica de encomendas e a realização das entregas, sendo seguidas pelo recebimento dos pagamentos.

 

Gráfico 2: Nível de dificuldade na adaptação para o comércio com entrega domiciliar

 

Fonte: Autores 2021.

 

Apesar das dificuldades, em 48% dos casos a entrega domiciliar apresentou maior rendimento em relação ao comércio nas feiras. Em 19% dos casos foi afirmado ter havido uma geração de renda equivalente ao comercializado nas feiras, indicando um possível canal alternativo de comercialização a médio e longo prazo. Essa discussão tem sido associada à literatura de digitalização dos mercados, o que durante a pandemia fez emergir diferentes iniciativas de comercialização de alimentos através de plataformas e sites. Gazolla e Aquino (2021) ao realizarem uma pesquisa sobre plataformas digitais de comercialização de alimentos identificaram a existência de 38 iniciativas em operação no Brasil, sendo a região Sul responsável por 31,57% das experiências.

A capacidade de internalização da nova rotina, a qualificação dos procedimentos de cada etapa com eficiência e a satisfação dos consumidores se tornam chave para o sucesso desses empreendimentos. As condições físicas e logísticas das tecnologias digitais, bem como a capacidade pessoal de uso destas ferramentas também são cruciais para a participação dos agricultores familiares neste canal de comercialização. De acordo com os dados do Censo Agropecuário de 2017, estima-se que 5,07 milhões de estabelecimentos rurais (72%) não possuem acesso à internet (IBGE 2019a).

Além da falta de acesso à internet nas propriedades rurais, existe o desconhecimento do manejo das tecnologias (Deponti et al 2015), baixa escolaridade (IBGE 2019a) e a resistência de alguns agricultores, por fator cultural (Fracari de Souza e Penteado Manoel 2021), como fatores que dificultam a implementação dessa inovação, se tornando impeditivos para o desenvolvimento das plataformas digitais nas realidades dos agricultores familiares. De acordo com Trendov et al. (2019), algumas das condições básicas a serem superadas para que o agricultor se desenvolva na área e implemente as tecnologias, são a infraestrutura, acessibilidade e conectividade do ambiente rural, nível educacional, treinamento, dentre outros aspectos.

 

Considerações finais

 

Este artigo discutiu o impacto da pandemia COVID-19 na comercialização direta da agricultura familiar em cinco regiões do estado do RS. A realização desta pesquisa demonstrou que os agricultores familiares buscaram desenvolver diferentes estratégias para disponibilizar os alimentos aos consumidores, numa lógica de reconstrução dos sistemas agroalimentares e dos canais de comercialização. Essa característica reverbera a capacidade de resiliência desta categoria social, frente a um fenômeno inusitado e em um cenário de baixíssimo suporte do Estado. Acreditamos que essa capacidade de mobilização social para manter as dinâmicas de abastecimento ativas, ressalta a relevância desses atores para a segurança alimentar da população e a urgência de ações públicas que deem o devido valor e amparo à agricultura familiar.

A comercialização dos alimentos com entrega domiciliar apresentou-se com um novo canal a ser explorado por vários agricultores, ainda que um maior domínio das tecnologias digitais possa potencializar essa modalidade de comercialização. Fica o desafio de se transpor as barreiras logísticas e estruturais que esses novos mercados digitais apresentam, em especial frente à concorrência corporativa.

Os dados das diferentes regiões ressaltaram a heterogeneidade entre a área metropolitana e o interior do estado, explicitando o desafio de ampliar a comercialização da produção agroecológica e a quantidade de feiras em todo estado. A região Central apresenta um considerável processo de abastecimento frente às demais regiões. Em termos de sustentabilidade, a região metropolitana poderia ter um melhor aproveitamento da produção regional, inclusive ampliando a participação dos agricultores familiares nas feiras convencionais mobilizadas pela prefeitura. Acredita-se que a maior atuação pública pode qualificar esses espaços de distintas formas: a criação de vales alimentação para funcionários públicos direcionando o consumo para as feiras da agricultura familiar local; a criação de espaços públicos para apoio da logística dos produtores; maior incentivo a produção saudável e sustentável com créditos específicos e redução de impostos; a vinculação de eventos turísticos e culturais com o fornecimento de alimentos regionais; o planejamento municipal do abastecimento, com melhor distribuição das feiras nos distintos bairros de forma a suprir toda a população, e a realização de campanhas divulgando a relevância das feiras para a segurança alimentar e nutricional da população, bem como o desenvolvimento regional.

Por fim, acredita-se que o mapeamento dos canais de abastecimento da agricultura familiar no estado é um resultado inédito que abre possibilidade para novas pesquisas e projetos de extensão, permitindo investigações mais amplas sobre o papel dessas iniciativas frente ao desenvolvimento regional sustentável e o abastecimento saudável da população.

 

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